“Valsa com Bashir”: para não esquecer

Passados 27 anos do massacre de Sabra e Shatila, o diretor israelense, Ari Folman, relembra-o em filme que usa recursos de grafic-novel e animação e traz para o século 21 a lembrança de um fato que ainda se repete com o conflito árabe-israelense.

No início deste ano havia uma profusão de imagens de mais uma invasão do território palestino pelas tropas israelenses. Cenas de prédios e casas destruídas e de corpos espalhados pelas ruas, avenidas e terrenos baldios da Cisjordânia eram repetidas à exaustão. Mas logo foram substituídas, com idêntica velocidade, pelas da posse de Barak Obama e, ao que parece, acabaram empurradas para um canto da memória coletiva. Assim ficarão até que alguém, através das várias formas de registro histórico à disposição, as reviva. Nenhuma novidade, por ser este um dos principais traços da multiplicidade de temas fortes, fornecidos pelos conflitos no Oriente Médio, desde a criação do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948. Mas, a exemplo do que faz o documentarista israelense, Ari Folman, em seu filme “Valsa com Bashir”, haverá sempre a necessidade de se estar relembrando estes fatos para que o espectador perceba que se trata de estratégia sistemática das camadas dirigentes de Israel. E não de um ato isolado ocorrido na região de secular conflito árabe-israelense.


 


 


Folman usa traços de graphic novels e animação para relembrar o massacre de cerca de 3.500 palestinos que tinham se refugiado nos campos de Sabra e Shatila, levantados nas cercanias de Beirute, capital libanesa. Ali, de 16 a 18 de setembro de 1982, soldados da Falange Cristâ Libanesa, às vistas das tropas israelenses, deixaram corpos de crianças, velhos e adultos amontoados uns sobre os outros. Vinte anos depois, Ari Folman, que dele participara como soldado, não se recordava do que havia acontecido naqueles fatídicos dias. Instigado pelo amigo Boaz, que tinha pesadelos com 26 cães ferozes, ele é levado a escavar a própria memória para entender porque aquelas cenas foram apagadas. A explicação, dada por sua psiquiatra, é de que este é o recurso encontrado pelo cérebro para não conviver com fatos que lhe causam dor. Ele, no entanto, busca outra forma de avivá-los: sai em busca dos amigos que estavam com ele naqueles dias.


 



 


Massacre de palestinos não é um fato isolado


 


 



Esta viagem de Folman a seu passado, não é, porém, um fato isolado, acontecido apenas com ele. A cada amigo que visita percebe idêntica reação. Também eles tinham soterrado aquelas cenas macabras. Neste vai-e-vem, Folman dá-se conta de que o mosaico de fatos que emergem são, cada vez mais, assustadores. Revelam a natureza do Estado em que vive e a forma como trata seus inimigos, em particular os palestinos. Eles não são inimigos em particular, identificados na batalha, mas apenas sombras, em que atira a esmo. Estão em prédios, em casas, nas ruas e recebem os projéteis e morrem. É como se apenas cumprissem ordens para devastar áreas habitadas inteiras, até que o outro lado não mais respondesse ou mostrasse a face ou qualquer movimento. Faz lembrar as imagens televisivas de prédios e ruas destruídas, corpos acumulados nas ruas e avenidas e terrenos baldios. Tudo muito técnico, pouco importando se há civis, seres humanos, crianças e velhos: importa apenas destruir, aniquilar.


 



Folman, ao longo de 90 minutos, faz o espectador entrar em contato com estas imagens, em clima opressivo. O uso da animação e da graphic novels contribui para que ele possa compor as cenas sem qualquer restrição temporal, de espaço e de presença humana. Às vezes, os personagens e os cenários são quase reais – e dada às circunstâncias o são realmente. Os planos, os personagens, o ambiente formam um todo, que, pelas características da animação, centram-se apenas no que interessa à narrativa. Inexistem movimentos outros que não os da composição de cena. Mas o significado a ultrapassa em muito, como nas cenas em que os cães avançam pelas ruas, insaciáveis, vingativos, e se detém diante do prédio onde morra Boaz. Algo de fantasmagórico se prenuncia e, ao mesmo tempo, projeta a culpa de Boaz por algo que jamais admitiu. Assim, mesclando subconsciente, constante busca e pedaços que a memória vai soltando ao longo dos relatos dos amigos; Folman constrói o trajeto do “Massacre de Sabra e Shatila”. 


 



Filmes como “O Leitor“ querem esquecer culpa


 



E indica que, ao contrário de Stephen Daudry, em “O Leitor”, e Mark Herman, em “O Menino de Pijama Listrado”, quer enfrentar seu passado de frente e não deixar que fato como este seja esquecido. Daudry e Herman, a título de centrar suas histórias em personagens que, aparentemente, não poderiam entender as implicações de seus atos, acabam por isentá-los de culpa pela execução de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Folman escapa a esta armadilha ao enredar, cada vez mais, seu personagem, portanto a si próprio, nos fatos que, então, tentava esquecer. Há culpa e enorme vontade de livrar-se daquele pesadelo, coisa difícil porque foram vividos intensamente. Existe sempre um vazio em sua memória e nas ruas onde são travados os combates. A cordilheira de prédios em Beirute, à beira mar, parece desabitada. Reinam balas, tanques, metralhadoras e os soldados israelenses em seus uniformes amarelo-abacate. Quando algumas pessoas surgem algo surreal ocorre: elas assistem aos combates como se estivessem diante da TV.


 



No entanto, estas pessoas não têm rostos, são grupos ou multidão. Quando quer tirar o conflito do anonimato, Folman centra os takes em Bachir Gemayel líder das falanges cristãs libanesas, assassinado dois dias antes do início do massacre, Ariel Sharon, então Ministro da Defesa de Israel, e Menahen Begin (1913/1992), então primeiro Ministro, como se a responsabilizá-lo pelo que ali ocorria. São takes, rápidos, mas o suficiente para o diretor e roteirista situe politicamente seu filme e torne evidente sua intenção de não deixá-los na sombra. Até chegar ao desfecho, quando todas as pontas estão ligadas, ele deixa o espectador em suspense, ainda que este devesse ter os fatos vivos na memória. Principalmente, pela exuberante cena do soldado israelense Frankel, valsando em frente ao pôster de Gemayel, enquanto balas zunem ao seu redor. Um belo exercício estético, de fantasia, de monstruosidade e de alienação do soldado em guerra, alheio aos seus atos e o que eles significam. E ilustram também a capacidade da diretora de arte Bridgit Folman de criar um clima lúdico através da animação, sem comprometer a intensidade da sequência.


 


Espectador monta os fatos como Folman


 



A esta altura, o espectador já está suficientemente impactado pelas imagens, mas ainda não recebeu o choque que o fará jamais esquecer o que aconteceu nos dias 16, 17 e 18 de setembro de 1982, nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, nas cercanias de Beirute, Líbano. Falta algo que o ligue de vez àqueles instantes, que Folman não quer agora esquecer. E este talvez fosse seu objetivo: jogar com as várias nuances do conflito, feitas em flashback, até que o espectador tivesse montado, como ele, todos os fatos que desembocaram naqueles dias. O arremate vem na forma de imagens reais de TV, rompendo a composição em graphic novels, com força tal que a garganta fica seca e o choro se insinua, mas não sai. Apenas sai uma pergunta: como foi possível? Na época, nas várias comissões criadas, inclusive em Israel, para julgar os culpados pelo massacre, foram usados termos que vão de assassinato em massa a replica do holocausto. Entretanto, 27 anos depois, a invasão da Cisjordânia mostra que a prática continua e a memória carece de ser reavivada como o faz Folman.


 



O recurso à graphic novels e a animação para tratar de tema de tal dimensão, em documentário, torna o fato ainda mais cruel. Tira da narrativa as tentações comuns de o espectador ser atraído pelo ator, pelos gestos e impressões que ele transmite. E coloca o fato no eixo correto, de dar aos fatos a exatidão, a clareza que, mesmo assim, engendra emoção e reflexão a um só tempo. Folman situa seu personagem não apenas no campo do conflito, deixa-o livre para faz associações, tais como sua paixão pela jovem Yaeli, e seu gosto musical. E ainda, quando debocha de seu tenente, que, sentado nu diante da TV, assistindo filme pornô, lhe dá instruções. Mostra que Folman, o soldado, não era destituído de humanidade, embora, no campo de batalha, ignorasse as razões de porque atirar a esmo em direção a prédios e campos, sem querer saber exatamente quais seriam as consequências. A guerra, nos diz Robert Aldrich, em “Morte sem Glória”, não é feita apenas de ordens. Enseja grande reflexão do soldado sobre as ações que lhes ordenaram executar.


 



Folman não quer se isentar de culpa


 


 


Folman, porém, não quer se isentar de culpa. Seu percurso em busca da verdade, dá a ideia de que grande parte dos soldados tem a mesma sensação quando colocado diante de suas lembrança. Às vezes o vazio se impõe; noutras a dúvida se estabelece. Nenhum patriotismo então o impede de ver em seus atos menos do que uma ordem político-militar que o faz ignorar que seu alvo não são prédios, como na guerra de hidrogênio, mas seres humanos, na maioria das vezes inocentes e vítimas das manobras das camadas dirigentes de seu país. Estas, sim, sempre anônimas e invisíveis. Ao término de “Valsa com Bashir”, o espectador deixa o cinema com a sensação de que as últimas cenas do filme são uma repetição do que viu em seus fins de noite na TV, no mês de janeiro de 2009, e já as tinha esquecido. E, talvez, os corpos mostrados por Folman sejam uma montagem dos mostrados pelos jornais televisivos. No entanto, é justamente isto que ele queria que não fosse esquecido: parece, mas não é. Ele, espectador, que se indigne com os constantes massacres e não o joguem para os porões da memória.


 



“Valsa com Bashi” (“Vals Im Bashir”. Israel, Alemanha, França, Finlândia, Suíça, Bélgica, Austrália, EUA. Documentário/Animação. 2008. 90 minutos. Roteiro/direção: Ari Folman. Personagens: Ori Sivan, Roni Bem-Yishai, Ronny Dayag, Ari Folman, Dror Haraz, Carmi.


 


(*) Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro.


 



Tem a ver


 


 


Muitos filmes merecem ser vistos pelo tema e pela abordagem que seus diretores, muitas vezes, desconhecidos, lhe dão. A coluna, que às sextas-feiras, veicula análise de um filme em cartaz, fará breves comentários de um ou mais deles, para que o leitor possa assisti-los em reprises, mostra dos melhores do ano ou em DVD. É uma forma de não deixá-los à margem da discussão como os dois que comentamos abaixo, que, de uma forma ou outra, discutem o mesmo tema que o analisado nesta semana.


 



Lemon Tree (Limoeiros) – Na fronteira de Israel com a Cisjordânia, Palestina, a viúva Salma Zidane (Hiam Abbass) cuida tranquilamente de seus limoeiros, com a ajuda de um caseiro, até que o ministro da Defesa israelense, Navon (Doron Tavory), muda-se para a mansão que faz divisa com o seu sítio. Por motivos de segurança, ele exige que os pés de limão sejam derrubados e Salma indenizada. Este é o simples enredo deste intrigante filme israelense, demonstração de que há um cinema militante no país, disposto a contestar as políticas de sua classe dirigente. O diretor Eran Riklis usa a simplicidade dos filmes iranianos (“O Jarro”, “A Maçã”, “O Balão Vermelho”) e a linha narrativa do diretor chinês, Zhang Yimou, em “A História de Qiu Ju”, para mostrar a resistência de Salma à decisão do ministro.


 



Neste filme, a camponesa Qui Ju se insurge contra o líder de sua aldeia, por este ter “chutado os baixios” de seu marido. Como as autoridades não punem o agressor, ela decide ir de instância em instância para obter justiça. Salma repete o mesmo trajeto, com determinação, o que serve para mostrar o quanto de arbitrário havia na decisão do ministro, que simplesmente poderia ter analisado que a proximidade do limoeiro e a divisa com a Cisjordânia o impediriam de ter a segurança necessária para viver em paz com a sua família. Riklis critica, desta forma, a arrogância do Estado israelense e se solidariza com os palestinos, vítimas deste tipo de perseguição.


 


(Etz Limon). Drama. Alemanha/França/Israel. 2008. 106 minutos. Roteiro: Eran Riklis, Suha Arraf. Direção: Eran Riklis. Elenco: Hiam Abbass, Ali Suliman, Doron Tavory.
     
    


(*) Melhor Filme “Panorama Festival de Berlim” 2008.


 


 


O Visitante – Uma das pérolas do cinema independente estadunidense, produzida em 2008, “O Visitante” pega um acadêmico entediado e sem perspectivas depois da morte da companheira e o faz entrar em contato com o mundo cheio de vida dos imigrantes árabes e israelenses. Walter Vale (o ótimo Richard Jenkins) é professor de economia política na Universidade de Connecticut, onde, além lecionar, co-assina obras que nem ao menos leu. Por uma dessas, ele é enviado à Nova York para proferir palestra sobre economia asiática. Ao chegar ao apartamento que mantém na cidade, encontra-o ocupado pelo casal Tarek Khalil (Haaz Sleiman), sírio, e Zainab (Danai Jekesai), senegalesa, que, logo se põe a deixá-lo. Vale entende o dilema de ambos e os convidam a ficar provisoriamente.


 


O acaso o faz entrar em contato com a cultura árabe-africana, a tensão de ser clandestino num país que se diz da oportunidade e o medo de ser deportado. A solidariedade se impõe não só pela química que se estabelece entre eles, mas porque recuperou a vontade de viver. Tarek o ensina a tocar percussão e o leva aos locais onde os grupos de imigrantes músicos se reúnem e ele se sente, enfim, integrado a uma comunidade que não exige nada dele, a não ser usar sua expressividade. Então, o jovem diretor Tom McCarthy chama o espectador para a riqueza das relações humanas e a troca descompromissada de experiências. Aquele é o renascimento de Vale, que, além disto, encontra razão para lutar por algo plausível: a liberdade.


 



Cenas como a dele com Mouna Khalil (a grande atriz palestina Hiam Abbass), após assistir a um espetáculo na Broodway e sua participação numa apresentação de percussão no Central Park são daqueles instantes raros no cinema. Mas há também instantes de ódio, frustração, quando Tarek denuncia a maneira com está sendo tratado pelo Departamento de Imigração estadunidense, que, pelo simples fato de ele ser árabe, o tra como terrorista; e de beleza quando Mouna se entrega a Vale, entre o temor pelo que poderia acontecer ao filho e a paixão que o estadunidense lhe desperta . Amor e solidariedade são os centros deste belo filme, também simples e sensível. Serve para atestar a possibilidade da convivência entre os diferentes na igualdade de objetivos comuns.


 


 


(The Visitor). Drama. EUA. 2008.103 minutos. Roteiro/Direção:Tom McCrthy. Elenco: Richard Jenkins, Haas Sleiman, Hiam Abbass, Danai Jekesai, Tzahi Moskovitz.


(*) Prêmio Melhor Filme Festival Deauville, França, 2008.

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