Veredas de Guimarães

“Viver é negócio muito perigoso…”, alerta o personagem Riobaldo Tatarana, de Grande Sertão: Veredas. Considerado um dos monumentos da literatura brasileira do século passado, o livro de João de Guimar&atilde

A obra de Guimarães Rosa é desafiadora. Muitos a elogiam, outros a criticam, mas todos são unânimes em apontar o esmero do autor em buscar uma linguagem própria de valorização e recriação das palavras. E as palavras são desafios para quem lê o autor mineiro. Paulo Rónai, tradutor e estudioso de inúmeras línguas, considera que “nenhum leitor entenderá a obra na íntegra”. A professora Nilce Sant’Anna Martins catalogou 8 mil palavras para serem elucidadas para o leitor em O léxico de Guimarães Rosa. A primeira palavra do Grande Sertão: Veredas, “Nonada”, constitui sozinha, na opinião dela, “a primeira frase e a primeira estranheza e está também no último parágrafo”. Assim começa o Grande Sertão:
“-Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas… Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda parte.”
Nestes tempos em que Brokeback Mountain ganha o Leão de Ouro, no Festival de Veneza, e é premiado também no Oscar, cabe lembrar que Grande Sertão é contado na primeira pessoa por Riobaldo, apaixonado pelo amigo Diadorim, “meu amor de ouro”, como a ele se refere. Encerrando sua narração, Riobaldo diz ao seu ouvinte: “Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia”.
 
 
Para meditar
 
Guimarães Rosa não escondia seu gosto pela palavra. Em carta a Harriet de Oris, registrou: “Não procuro uma linguagem transparente”. Em entrevista a Günter Lorenz, informou: “Cada palavra é, segundo sua essência, um poema”. Em missiva a Curt Meyer-Clasou, instruiu: “Em geral, quase toda frase minha tem de ser meditada. Quase todas, mesmo as aparentemente curtas, simplórias, trazem em si algo de MEDITAÇÃO e  AVENTURA”.
Roberto Assunção, com quem Guimarães trabalhou no Itamaraty, testemunhou: “Ele sofria de perseguição pelos vocábulos. Anotava tudo, o tempo todo”. Manuel Narde, o Manuelzão da novela “Uma estória de amor”, incluída no volume Corpo de Baile, referiu que o escritor, durante uma viagem, "perguntava mais que padre", tendo consumido "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes", com anotações sobre a flora, a fauna, os usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias dos sertanejos.
Mas essa abordagem do artista lhe atraiu também observações severas, como as de Gilvan P. Ribeiro que, em O alegórico em Guimarães Rosa, diz que no Grande Sertão “o homem se vê reduzido à mera figuração abstrata, campo para o debate entre dados ontológicos metafísicos (com permissão da aparente redundância). Elimina-se o homem real, seus problemas reais, seu mundo real. Aceita-se como definitiva a fetichização, a alienação”. Para este crítico, nessa e em outras obras roseanas “a linguagem não representa, ela é”. Já Haroldo de Campos assevera que no Grande Sertão “a linguagem é o palco móvel para o embate metafísico entre o homem e o Demo”.
 
Vida de viajante
 
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas, dia 27 de junho de 1908, filho de Francisca e do comerciante, juiz-de-paz, caçador de onças e contador de estórias Florduardo Pinto Rosa. Com menos de 7 anos começou a estudar francês, por conta própria e, em seguida, estudou holandês, com um frade. Depois, em Belo Horizonte, iniciou o alemão. Relatou a uma prima: “Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração”.
Em 1929 os quatro contos que inscreveu num concurso da revista Cruzeiro foram premiados: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (Tempo e Destino, em grego), O mistério de Highmore Hall e Makiné. Formou-se médico na Universidade de Minas Gerais, em 1930. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, foi voluntário na Força Pública. Posteriormente, efetivou-se,  por concurso. No ano seguinte foi Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria em Barbacena. É quando pesquisa o jaguncismo que existiu na região do Rio São Francisco até por volta de 1930.
Obteve o segundo lugar num concurso para o Itamarati e desistiu da Medicina, como contou numa carta de 20 de março de 1934: “Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material; só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez; nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol”.
Em 1936, sua coletânea de poemas Magma (nunca publicada) recebeu o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Em 1938, sob o pseudônimo de "Viator" (viajante – do latim viatore), participou do concurso da editora José Olympio, perdendo para Maria Perigosa, de Luís Jardim, com uma primeira versão de Sagarana. Graciliano Ramos, jurado no concurso e que votou no livro de Luís Jardim, testemunhou, anos depois, que havia aberto “um cartapácio de quinhentas páginas grandes: uma dúzia de contos enormes”. Viu nele um “volume desigual”, onde, se os “pontos elevados eram magníficos, os vales me desapontaram”. Quando os contos foram publicados, 10 anos depois, Graciliano saudou: “Vejo agora, relendo Sagarana, que o volume de quinhentas páginas emagreceu bastante e muita consistência ganhou em longa e paciente depuração”. E destacou, o autor alagoano, na prosa do escritor mineiro, o movimento de “uma boiada com vinte adjetivos mais ou menos desconhecidos do leitor”. Opinou, a respeito: “Se isto é defeito, confesso que o defeito me agrada”.
Em Sagarana, Rosa aborda a paisagem mineira, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado. Eis o trecho que agradou Graciliano: “Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, sambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocaleos, borralhos, cumbados, chitados, vareiros, silveiros… E os toscos da testa do mocho macheado, e as rugas antigas do boi coruolão…”
Em 1938, Guimarães foi nomeado cônsul adjunto em Hamburgo, na Alemanha, onde protegeu e facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo nazismo, ajudado por sua segunda esposa, Aracy Moebius de Carvalho. Ele dizia: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência", contou Aracy. O casal foi homenageado, em abril de 1985, pelo governo de Israel: seus nomes foram dados a um bosque que dá acesso a Jerusalém.
Durante a Segunda Guerra, certa noite, Rosa saiu para comprar cigarros. Quando voltou, sua casa fora destruída por um bombardeio. O fato eriçou ainda mais a superstição e o misticismo que sempre adotara. Ele acreditava na força da lua, em curandeiros, feiticeiros, umbanda, quimbanda, kardecismo e se interessou também pela seita estadunidense Ciência Cristã. Em 1942, quando o Brasil rompeu com a Alemanha, foi internado em Baden-Baden, juntamente com outros brasileiros, por quatro meses, até serem trocados por diplomatas alemães. Retornou ao Brasil e seguiu para Bogotá, onde trabalhou como secretário da Embaixada até 1944. Após várias passagens pelo exterior, instalou-se no Brasil em 1951. No ano seguinte, sua excursão ao Mato Grosso resultou na reportagem poética Com o vaqueiro Mariano.
 
Médico, rebelde, soldado
 
Em 1962, publicou Primeiras Estórias, com 21 contos pequenos. Em 1963, candidatou-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras (na primeira, em 1957, obteve apenas 10 votos). Foi eleito, por unanimidade. Mas somente foi empossado em dia 16 de novembro de 1967, quando, com a voz embargada, discursou que "a gente morre é para provar que viveu". Três dias depois, morreu sozinho em Copacabana (a esposa estava na missa). Meses antes havia publicado a coletânea de contos Tutaméia: Terceiras estórias e sido indicado para o prêmio Nobel de Literatura, por iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos. Tinha 59 anos. Postumamente foram publicados Estas estórias (1969) e Ave, palavra (1970)
Disse, numa de suas últimas entrevistas: “Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte."
Ao saber de seu falecimento, o amigo e poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu:
"Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar"

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