Viagem à Coréia do Norte: histórias para contar

“Nem só de dialética vive o homem”, me dizia meu saudoso, e insubstituível, amigo Edvar Bonotto. Assim, uma viagem única na vida de um brasileiro não poderia se resumir a conversas muito sérias sobre superestrutura, base econômica, modo de produção. Desta forma, as coisas não fluem e não chegam a um determinado público.

Assim, achei mais do que justo expor abaixo alguns momentos vividos no dia-a-dia de minha viagem pela República Democrática e Popular da Coréia. Foi uma forma que encontrei para expor experiências de forma didática e até divertida. Repleta de subjetividade, não poderia deixar de escapar meus sentimentos, tanto de gratidão,  para com essa gente que me tratou de forma única, como de meus dramas cotidianos. A saudade de minha companheira, a preocupação para com um amigo em dificuldades…

O “picareta russo”

Os russos estão interessadíssimos na demanda norte-coreana por petróleo. Evidente, o país não produz uma gota sequer do fóssil.

“Caçando papo” com estrangeiros no Hotel Koryo, de repente chegou uma “leva” de russos. Sem preconceitos, mas, ao mesmo tempo “cheio de preconceitos” procurei um deles para “bater um papo”.

Sabendo da secular baixa autoestima do povo russo, perguntei a ele onde aprendeu a falar tão bem a língua inglesa (na verdade, ele falava mal pra 'cacete'). Ele me respondeu se achando o 'máximo': “oh, na Universidade de Línguas Estrangeiras de Moscou, entre os anos de 1976 e 1980”.

Pensei: “que m… Lênin tinha razão: 'um país com potencial europeu, mas com uma subjetividade cheia de baixa auto-estima, bem Ásia Central.”

Continuando a conversa (ele tem um 'estilão' de mafioso [cheio de ouro espalhado pelo corpo proveniente de alguma antiga estatal soviética extratora de metais preciosos d'algum canto da Sibéria], ex-membro do PCUS, adorador de Yeltsyn, “puto” com Putin), ele estava todo, todo feliz em falar com um brasileiro. Adora futebol. Para fazê-lo chegar ao orgasmo, lembrei a ele de uma memorável partida da Copa de 1982, onde apesar da vitória brasileira, de virada sobre a URSS (com direito a um “golaço” do corinthiano e então capitão da escrete canarinho, Sócrates), nunca havia me esquecido das espetaculares defesa do goleiro soviético, Dasaev e das investidas mortais do ucraniano Blockhim.

Após tirar dele todas as informações possíveis e necessárias à minha pesquisa e sem revelar minhas opções político-ideológicas, o inquiri sobre suas opiniões sobre Lênin, e ele as sintetizou da seguinte forma:

“Um grande FDP…”.

Repliquei: “Por que, tovarich (nota: camarada em russo)?”.

Claramente não gostaste do pronome de tratamento utilizado por mim. Após fazer uma cara feia disse-me: “ele (referindo-e a Lênin) iniciou uma grande e horrível ditadura”.

Pensei comigo: “FDP é você. Acho que você não tinha nenhum parente entre os mortos do 'Domingo Sangrento' em 1905 [quando o 'democrático' czar mandou abrir fogo contra o povo que pedia alguns minutos de atenção com o 'paizinho]'.”

Continuei ruminando: “comerciante de importação e exportação é uma m… Cambada de lesa-pátria, seja em São Paulo, Xangai, Buenos Aires ou Moscou…”. Após esse pensamento, segurei meus leninistas impulsos e o inquiri:

“Certo, mas se os 'russos brancos' tivessem ganho a Guerra Civil, você estaria conversando em inglês em território alheio? Ou viveria como um pária tártaro, servindo de guarda a alguma base americana em seu país? Ou, em detrimento das proezas de 'Pedro, o Grande', teria aprendido no ginásio, as [falsas] proezas de Churchill no norte da África? Poderia educar seus filhos da forma como eles estão sendo criados, ou seja, em ótimas escolas construídas na época de Stálin?”

Estou até agora aguardando a resposta.

Comigo mesmo, minha mente começou a vociferar. Todos os meus pré (conceitos) vieram à tona em minha 'poluída' latinoamericana mente:

“Picareta. Miniatura de FHC com vodca…” E outras cobras e lagartos merecidas e com lastro histórico.

As ruas de Pionguiangue e minha Lulu

Saindo da casa do Embaixador

Beijo no rosto de Arnaldo e Maria Helena…

Lembranças para Emília, a cara do povo brasileiro…

As ruas de Pionguiangue estavam vazias

Poucos carros davam sinal de vida, circulação às artérias urbanas

Ruas sem iluminação

Luzes somente para os retratos e estátuas do “Grande Líder”

Estava perguntando para mim mesmo:

Cadê minha Lulu???

A Universidade Kim Il Sung reluz firme

Realismo socialista

No Museu da Libertação

Na Assembléia Popular

O carro vai indo

Estava perguntando a mim mesmo

Cadê minha Lulu???

Algumas tendas estatais ainda abertas

Revejo o Monumento à Idéia Juche

Revejo o Monumento ao Partido do Trabalho

Meu guia na carona falando comigo sem resposta

Estava perguntando a mim mesmo

Cadê minha Lulu???

Chego no hotel

São nove e vinte da noite

Restaurante fechado

Abriu-se para mim

Simpatia

“Brasileiramente”, deixo escapar para o garçom

“Did you see my Lulu???”

“I See you you in Pyongyang”

Meu amigo, mestre e orientador, desde meus 18 anos, Armen Mamigonian, ao contrário de 99% de grande parte dos “intelectuais “ de meu Brasil varonil, sempre falou bem da experiência coreana. “Larga história de revoltas camponesas”, dizia ele. Politicamente incorreto, mas muito consequente, diferente de alguns intelectuais “bonitinhos” (que adoram falar o que determinado público quer ouvir).

Com ele não existe “música para os ouvidos” e sim, “verdade às mentes e corações”.

Então, decidi “pagar caro” (aliás, nada aqui é barato para estrangeiros: entre nós, “10 euros”) à um presente a ele, diretamente da terra de nenhum Pugachev coreano e sim da pátria do grande Kim Il Sung. Comprei uma camiseta com a gloriosa bandeira da RDPC na frente e nas costas. Na manga esquerda um simpático e asiático, “Nice to meet you”. Nas costas um “I see you in Pyongyang”.

Moral da história:

Adoraria reencontrar esta digna e antiimperialista pátria.
Amo você, querido Armen.
Ilha num mar de covardia intelectual.
Amei esse lugar…
Vida eterna a Kim Il Sung…
Rodrigo
Em meio a deslumbres em Pionguiangue
Penso nele
Em seu estilão amigo
Em seus demônios existenciais
Me pergunto
Como está meu amigo Rodrigo?
Meu irmão Rodrigo
Rapaz brilhante
Cercado e invadido por dúvidas
Introspecção gaúcha, coração carioca
Vasco de nome e clube de regatas
Me pergunto
Como está meu amigo Rodrigo?
Meu irmão Rodrigo
Semelhante a mim
Rebeldia saudável
Inquietude intelectual
Homem apaixonado
Me pergunto
Como está meu amigo Rodrigo?
Meu irmão Rodrigo
Um oceano nos separa
Quero que saibas
Estou ao seu lado
Me aguarde com Lulu
Mesmo assim
Me pergunto
Como está meu amigo Rodrigo?
Meu irmão Rodrigo…

Cadê nosso General?

O Hotel Kóryo fica situado a menos de cem metros da estação ferroviária. Toda estação ferroviária que se prese conta com grandes alto-falantes para transmissão de notícias. Pela menos as estações ferroviárias da Luz e do Brás em São Paulo, assim procediam. Já a moderna Estação Ocidental de Pequim conta, já, com modernos aparelhos de televisão espalhados pela estação.

Num fim de tarde pedi para meu guia Son, me levar para dar umas bandas em volta do hotel. Apesar da pouca distância percorrida, deu para enchê-lo (o saco) de questões. Vi um pequeno e rústico trailler. Perguntei a ele: “Son, esta tenda é estatal ou privada?”. De pronto me lançou um, “nosso país é socialista, não existe propriedade privada dos meios de produção”. “Son, vamos tomar um sorvete?” Sim, camarada Khalil, vamos”. Ao perguntar o preço de um sorvete, tipo geladinho, mais água do que outra coisa, ouvi a réplica de um simpático coreano com um sorriso, bem camponês, estatelado no rosto: “Um euro”. Pensei, bem paulista: “Meu, com um euro no Brasil, eu tomo um sundae do Mc Donalds.” Deixa eu deixar claro à “rádio patrulha esquerdista” de plantão que ingiro o produto, não a ideologia.

Minha Lulu, com certeza gracejaria um “hihihi”.

Tudo bem, se “estou no inferno vamos tratar de abraçar o diabo, mas, sem beijo de língua”. Acabava que por me confortar em saber que estou ajudando um governo revolucionário a tanto furar o assassino cerco imperialista, quanto a financiar importações ultranecessárias à reprodução deste povo.

Bem, voltando à sonzeira da estação ferroviária, de repente passando por lá ouvi uma canção que todos os dias me acordava pela manhã e me acompanhava em minha elucubrações de final de tarde no quarto do hotel. Percebi, percorrendo o rosto de Son, lágrimas percorrendo sua inconfundível face asiática. Perguntei, também invadido por sua nacional emoção. “Qual o nome dessa música?”. Com a voz embargada, meu amigo e guia respondeu: “Esta música chama-se 'Cadê nosso General', composta por um camponês no dia da morte do presidente Kim Il Sung.”

Também emocionado. Duro, sin perder la ternura, abracei Son e pensei comigo:

“Cadê nosso Getúlio Vargas do século 21?”

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