Visita de cova

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Desta vez fui ao Riachão das Neves para as exéquias de uma tia, última da irmandade de minha mãe. Tia Isabel, residente no Brejinho, era retrato irretocável da mulher sertaneja. A pele tostada da mestiçagem e do sol. O riso aberto de candura original. Simples como o sol, a chuva. A filharada povoava a extensão de seus desejos e ambições. A réstia de netos e bisnetos enchia o terreiro da casa de enchimento. O marido Antônio Borges a construiu nos dias da juventude e já vai durando quase um século. Depois da morte do marido ela foi ficando triste, sobrevieram doenças e, por último, seu coração parou. Como a rolinha do campo não pôde mais cantar sem sua parelha. Fechou os olhos que viram tanto mundo, tantas manhãs, tantos futuros. No dia de sua morte os filhos e filhas tomaram as providências para o velório. Durante toda a noite chegariam parentes, amigos. Gente vizinha e mais distante. Cerimonial de homenagem e despedida. Enquanto se estendia a espera para o sepultamento, entre choros, gemidos e preces, as mulheres da família preparavam café. Cozinhavam para alimentar os veladores, os que rezam e até os curiosos, porque a morte também é um evento que dá conta do tempo. As bebidas e alimentos, a cachacinha que circula na alta noite dos indormidos, não têm roupagem de festa. Não quebram a cerimônia do rito mortuário. Sustentam a lenta despedida, dão mínimo conforto a quem veio de longe e que não pode se prover de outra forma. Também é vontade da morta, que sempre foi generosa e acolhedora. Assim era na vida, assim na morte. Cumpridas as exéquias, todos se vão. Restam apenas os parentes próximos procurando nos vãos da casa, no terreiro a sombra prestimosa da matriarca. Iniciam-se agora os ritos finais de despedida. Contam os dias a partir da morte ou do sepultamento. No caso local, o da morte. Costume assentado. Iniciam os preparativos para a visita de cova, uma espécie de peregrinação que, no sétimo dia, leva parentes e amigos ao túmulo para prestar os últmos adeuses. No dia anterior a família se esforça em preparar um café reforçado para os visitantes. Bolos, biscoitos, farofa e outros de comeres. Depois, em caminhada, dirigem-se ao cemitério. Muitas velas, flores e rezas. Um tom imemorial se destaca entre credos, padre nossos e cantos. A voz de uma mulher quase negra, de pele lisa e cabelos pretos sobressaiu no murmúrio pungente. Rezava antigas orações trazidas de um tempo quase sem lembrança. A devota desfiava uma ladainha em latim, adaptando-a a prosódia do sertão, ao ritmo e entonação de aboio, repente e lamentação. A todos comove. Desatam-se os choros. Fico sabendo que a rezadora com seu discurso atávico é Renilde, respeitada devota e curadora. As almas se confortam. Depois vão se afastando. Nos próximos dias cada um irá retornando a seus afazeres. A morta, assume outra forma de vida, passa a ser memória, presença índerrogável na lembrança. Exilada de sua parte morta, espalha-se em gesto maternal, avoengo como se a vida ficasse agora e para sempre incorruptível. Paira no encantamento da lembrança sobre o tamarineiro, o pé de umbu, o canto das galinhas no terreiro, a gravidade dos filhos e os sorrisos alvorecentes de netos, bisnetos tataranetos, per semper et semper…

*Aidenor Aires escreve neste espaço às sextas-feiras.

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