“Viver”

Filme emociona ao explorar a redescoberta do essencial, com Bill Nighy brilhante em um drama sensível sobre o tempo, as pequenas alegrias e o verdadeiro significado da vida.

Foto: divulgação/Lionsgate

O belo e sensível filme “Viver” (“Living”) é refilmagem de um clássico do cinema escrito e dirigido originalmente por Akira Kurosawa – um dos cineastas mais importantes e influentes do século XX. Relançado 71 anos depois, a história se passa em 1952, na capital britânica. Kazuo Ishiguro, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2017, provavelmente iluminado e seguidor do mestre Akira, reconstrói o roteiro para a película Living lançada em 2022, com inspiração na novela russa de 1886, “A Morte de Ivan Ilyich”, de Leo Tolstoy.

A produção do filme é tão real que sentimo-nos transportados à Londres dos anos 50, do imediato pós-Guerra, na entrada e saída da prefeitura, o que também dá uma sensação de “tempos modernos”. Registra-se uma Londres conservadora, com seus valores de defesa da família tradicional, marcados em cenas do filme.

A maior parte do tempo se passa em uma repartição pública, com pilhas de papelada e uma burocracia inercial meio que atrofiada nos funcionários da prefeitura em geral. O filme é dirigido pelo sul-africano Oliver Hermanus, com a atuação primorosa, impecável, do veterano ator Bill Nighy (indicado a Oscar de melhor ator em 2023), um funcionário público que mantém uma rotina inabalável. Seus colegas trabalham todos em sua sala, com mesas voltadas um para o outro, mantendo o silêncio, com pequenas conversações, muito mais para ver como empurrar para debaixo das pilhas de papéis as demandas de obras na cidade.

Nighy vive Mr. Williams, que cumpre rigorosamente a rotina de trabalhar todos os dias, pegando o trem e desembarcando na repartição pública. Ele comanda o Departamento de Planejamento da Prefeitura de Londres de maneira metódica, enfadonha e parecendo alheio a tudo que o cerca. Contudo, dois funcionários destoam dos demais: o recém-contratado Peter Wakeling, interpretado pelo esperançoso e vivo Alex Sharp, e a jovem Miss Harris, vivida pela atriz Aimee Lou Wood, bem-humorada e sonhadora, que deseja se expandir em outro emprego.

Williams mora com o filho e a nora. Sua relação familiar é polida e reservada, o que o impede de conversar com o filho sobre o surgimento de um câncer sem cura, diagnóstico transmitido pelo médico havia poucos dias. Após saber de seu prognóstico de poucos  meses de vida, sua vida transforma-se significativamente. Williams mergulha num momento de reflexão sobre sua história de vida e profissional, seu dinheiro guardado, sua rotina, sua indiferença para com o que se passa em torno de si. Ele começa a ver a realidade com um olhar mudado, mais humano e interessado. A proximidade da morte e o até então distanciamento da chama da vida, do “Viver”, aos poucos se constituem em um cenário que leva Mr. Williams a buscar ocupar bem o pouco tempo que resta, como, por exemplo, prestar – de fato – atenção nas pessoas que o cercam, assim como refletir sobre sua monotonia laboral. (veja trailer abaixo)

Surpreendentemente, falta ao trabalho por alguns dias, o que deixa seus colegas intrigados e preocupados. Enquanto não comparece ao serviço, Williams resolve visitar alguns bares e ouvir músicas com uma pessoa que conheceu em um café. Em uma dessas saídas, ele canta uma bela música do folclore escocês sobre uma árvore (“The Rowan tree”), que também fala das pessoas e de suas memórias ao redor dela. Neste momento, com grande tristeza lembra-se de sua mãe e da sua esposa falecida.

Mas, o mais forte da trama é justamente a relação que estabelece com a jovem Miss Harris, que, com sua espontaneidade e candura, encanta o protagonista principal, trazendo-lhe a força de querer viver, mesmo em meio à sua condição de doença. Ao almoçarem em um restaurante caro de Londres, a jovial colega de trabalho relata que batizou todos os colegas com um apelido, e a ele deu o nome de Senhor Zumbi. A princípio, ele se surpreende ao ouvir isso – “O Senhor é como uma múmia do Egito, está morto mas ainda vive” – o que depois o faz rir, e mais uma vez motiva reflexões a Mr. Williams sobre sua vida pregressa e o quanto tinha deixado de “viver”.

Por sua interpretação ao mesmo tempo sóbria e eventualmente divertida, o personagem de Bill Nighy lembra a de outro grande ator inglês, Peter O’Toole, no filme “Venus” (de 2006), em que faz o papel de Maurice, um ator velho e decadente, mas que se revitaliza ao conhecer a jovem Jessie (Jodie Whittaker), aspirante a modelo.  Maurice leva Jessie a uma galeria onde, diante de uma pintura, pergunta a ela: “Venus (apelido que deu a Jessie), sabe qual é a coisa mais bela que um homem verá na vida? A figura de uma jovem nua.” Ela replica: “E qual a coisa mais bela que uma mulher verá na vida?”, ao que o velho responde: “O seu primeiro filho”.

A mudança do personagem Mr. Williams é tão nítida que seu semblante e sua postura transformam-se visivelmente.

“Viver” traz um ensinamento importante: o quanto é preciso apreciar muitas vezes o que está próximo de nós, o quanto há de beleza nas pequenas coisas (“Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, versejava Pessoa) e do quanto sofremos por algo que pode não ser tão importante. Ao mesmo tempo, é também um filme sobre a velhice, porém com a sabedoria nova que pode aflorar com o passar do tempo.

Com música da pianista e compositora francesa radicada em Londres Emilie Levienaise-Farrouch, o filme avoluma-se em beleza e sentimento pela vida.

Ficha Técnica:

Título no Brasil: Viver (“Living”)
Ano de lançamento: 2022
Gênero: Drama
Duração: 102 minutos
Direção: Oliver Hermanus
Disponível no streaming Prime Vídeo

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