Viver com propósito
Quando amamos, não tememos, assim como o casal absorto do risco de uma rua deserta e mal iluminada. Essa falta de temor é poderosa, me lembra a aposta do artista ao grafitar muros que não são seus
Publicado 30/09/2021 20:12
Um dia, bell hooks voltava para sua casa em Nova Iorque quando uma frase pintada em um muro chamou atenção: “A busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. Ela vivia o luto pelo fim de uma relação que durou 15 anos, e aquele grafite a ancorou numa realidade onde o amor era possível. Mirar aquelas palavras se tornou uma meditação diária, tomada pela tristeza quando a construtora responsável pelo terreno apagou tudo com tinta branca.
Gosto dessa história porque é uma cena comum. Eu mesma já travei conversas com pensamentos riscados em muros, fiz amizade com rostos enormes e multicoloridos, e senti a paisagem cotidiana mais pobre quando arrancadas da vista – não só a paisagem externa, mas a interna, também. Porém, nunca fiz como bell que, inconformada com o apagamento da mensagem, localizou o artista para conversar e ganhou fotografias da arte de rua, que pregou na cozinha para todos os dias lembrar-se da busca pelo amor.
Pouco antes de começar a escrever esse texto, eu caminhava pelas ruas escuras entre o ponto de ônibus e o prédio onde moro quando, ao passar por um terreno baldio, me deparei com uma forma humana ameaçadora encostada no muro. Apesar do susto, eram apenas dois amantes unidos num longo beijo, o que me fez sorrir e pensar em como o amor pode ser perigoso.
Quando amamos, não tememos, assim como o casal absorto do risco de uma rua deserta e mal iluminada. Essa falta de temor é poderosa, me lembra a aposta do artista ao grafitar muros que não são seus. O que todo grafite diz é que os muros não têm dono, logo eles, que servem para lotear em terrenos o que poderia ser de usufruto coletivo. Todo grafite é uma reivindicação por coletividade, portanto. No espaço urbano, esse ambiente onde as privações se acumulam, compartilhar valores coletivos pode ser humanizador.
Trago essas imagens simples para falar com as pessoas desesperançadas diante do futuro incerto de nosso País. Como elas, eu também tenho achado difícil me levantar nas manhãs, sabendo que irei enfrentar a sensação desvitalizante de que mais um limite de humanidade foi ultrapassado, deixando a todos nós cada dia mais brutalizados. Cada dia, um incômodo que caminha para se naturalizar.
Só me resta enfrentar o risco de parecer prosaica diante do julgamento da leitora ou do leitor, ao falar nestas linhas sobre o amor e, para isso, pego emprestadas as reflexões de bell hooks sobre a ética amorosa, esmiuçadas no livro ‘Tudo sobre o amor – Novas perspectivas’, de onde pincei a história que abre este artigo.
Posso dizer que essa foi uma das leituras que me salvaram nos anos de pandemia e descaso governamental com a vida da população, ao reunir ideias poderosas sobre o amor, que também poderão alentar a leitora ou o leitor.
Nesse ensaio, bell hooks aborda como o modelo de família tradicional pode ser uma incubadora de traumas e violências, impostas sob o disfarce da proteção e do cuidado patriarcal, e como esse ambiente sedimenta os papéis de gênero no ideal de amor romântico, que alienam homens dos próprios sentimentos, encorajando-os à indiferença, à mentira e ao silêncio, deixando para as mulheres todo o trabalho emocional do casal.
A autora também critica a cultura da ganância, que objetifica os pares amorosos e transforma relações em bens descartáveis, e aponta algumas soluções para um resgate do amor, como o autoconhecimento, a espiritualidade e o viver com propósito, pensando em um mundo do trabalho que não seja um espaço de exploração e acúmulo de riquezas, mas uma dimensão da vida voltada para o serviço.
Penso que essa última dica, em especial, poderá nortear a todos nós, os sobreviventes, para fora de uma vida amesquinhada, banalizada e alienada de sentido. Aplicar saberes, ofícios e talentos em causas direcionadas ao bem comum são uma forma de orientar a vida segundo uma ética amorosa, partindo do princípio de que o amor é ação e prática, nas palavras de bell hooks: “O amor é o que o amor faz”.
Tendo em vista que muitos dos direitos e bens culturais que nos beneficiam hoje, ainda que ameaçados ou temporariamente suprimidos, foram conquistados por esforço coletivo e ao longo de gerações, nós, que ainda somos jovens no ano de 2021, temos muito trabalho a fazer.
Mudando um pouco a perspectiva de que temos enfrentado anos de levante neofascista em todo o mundo, há uma efeméride no ano corrente que não deve ser esquecida. No centenário do educador popular Paulo Freire – um exemplo de vida com propósito e uma das influências intelectuais de bell hooks –, vale lembrar uma de suas lições sobre amor e coletividade. Disse Freire: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”.