“Vôo 93”:Ataque sem motivação

Diretor americano Paul Greengrass aborda, sem mostrar motivações, o que teria acontecido ao vôo da aeronave da United Airlines que ia de Nova York para a Califórnia durante os ataques de “11 de setembro” nos Estados Unidos.

O “11 de Setembro” ainda é um dia misterioso para a maioria das pessoas. Um mistério porque suas motivações nunca aparecem na mídia com a devida clareza. Essa obscuridade torna os contundentes ataques ao Pentágono e às Torres Gêmeas do World Trade Center atos cujo significado estão além da compreensão do cidadão comum. As explicações existentes vêm do Governo Bush e dos raros comunicados de Osana bin Laden, líder da Al-Qaeda. Ambas servem para, quando muito, tornar o clima apocalíptico. Nestes tempos místicos, pós o “11 de setembro”, esse sentimento serve aos espíritos religiosos de ambos os lados. Esta é, em suma, a sensação de quem assiste a “Vôo 93”, do norte-americano Paul Greenglass, sobre o avião da United Airlines, que caiu na Pensilvânia no mesmo dia que os outros três atingiram seus alvos. Somos apresentados aos personagens em seqüências rápidas, minimalistas, sem delinear o perfil de quem vemos.



                          


Os primeiros a surgir são os jovens árabes. Um deles, magro, tenso, reza. Os outros, igualmente tensos, terminam os preparativos para a viagem que irão empreender. A reza é a única manifestação que nos permitirá saber que eles são árabes. Eles não discutem o que irão fazer. Estão imbuídos, por sua reza, de uma missão divina, nos quer supor Greengrass.  Logo são substituídos pelos norte-americanos do centro de controle de vôo de Newark, estado de Nova York. Rostos surgem e desaparecem, frases se sobrepõem. Ficamos sabendo dos preparativos para as decolagens e as aterrissagens. Não fosse a forte carga emocional, a curiosidade, nossa tentativa, enfim, de saber o que aconteceu realmente no vôo 93, estaríamos diante da apresentação dos personagens de “Aeroporto”, filme de George Seaton, que inaugurou as tragédias aéreas no cinema.


 



                          
No entanto, queremos saber mais sobre esse misterioso vôo que pouco apareceu na mídia. Greengrass, porém, não nos deixará saber mais sobre o grupo de jovens árabes que embarcam no vôo 93. Eles são arquétipos, seres sem perfil delineado, motivação inexistente, senão tomar o vôo que os leve à Califórnia. O único traço de sua missão são os fios amarrados no corpo de um deles e a faca escondida sob a camisa no outro. Nada mais. Dos passageiros sabemos pouco, também. Greengrass não os individualiza, tampouco. Ficamos nesta estrutura, que não fosse, como já observamos, a carga emocional do “11 de setembro” iríamos dizer que se trata de um documentário sobre o controle de vôo de aeronaves e uma suposta encenação sobre como os passageiros de uma delas consegue domar seus seqüestradores.


                        


 


Assunto sério se perde no filme


                        


 


O assunto é sério. O primeiro filme a chegar aos cinemas sobre o “11 de setembro” só esclarece o que realmente acontecia durante o seqüestro do avião da United Airlines nos letreiros finais. Ali se fica sabendo que George W. Bush não permitiu que caças da aeronáutica americana, que estavam a 160 milhas, não atacassem ou abordasse o avião. E, além disso, que as autoridades norte-americanas não souberam tratar fatos inusitados como os de “11 de setembro”. Isso se percebe pelas conversas entre os centro de controle e os militares. Trocam informações, mas não passam disso. Também os árabes, dos quais não se sabe a origem, as motivações, os objetivos, são apresentados como seres aturdidos, nada mais.



                     


Greengrasse errou feio na abordagem de tema tão polêmico e simbólico de toda uma época. O “11 de setembro” foi o  primeiro ataque a mostrar, nos tempos modernos, a vulnerabilidade interna dos EUA. Suas derrotas em Pearl Harbor (Japão), Vietnã, Mongadiscio (Somália) e Baía dos Porcos (Cuba) são fatos externos que atestam a fragilidade de suas tropas, embora dotadas de armamentos ultramodernos. Internamente, não, foi a primeira vez que isto aconteceu. Mudou todo um conceito sobre a suposta invulnerabilidade americana dentro de suas fronteiras. O filme de Greengrass ao reduzir os fatos a um confronto entre pessoas, que sabemos árabes por sua reza, não por eles dizerem de onde são, e norte-americanos por estarem em seu território, não nos permiti refletir sobre o “11 de setembro”.
                    


Pelo contrário, Greengrass reforça, assim, o já arraigado preconceito contra os árabes. Eles são apresentados como infantis, o jovem que tem a bomba amarrada ao corpo, indeciso, o que co-pilota o avião, ou deslocado, o que há todo momento adverte os passageiros sobre o que poderá lhes acontecer. E tampouco nos faz torcer pelos passageiros que resolvem se rebelar contra os jovens árabes. Tudo é reduzido ao mínimo, que se transforma num coletivo pela ação do filme. Os controladores de vôos que vão nos revelando o que acontece e presenciam, via tv, o choques dos aviões contra o Worl Trade Center, os militares que ficam aturdidos, sem saber o que fazer, os passageiros que querem evitar a ação dos jovens árabes, os jovens árabes que buscam mantê-los sob controle. Aos poucos ficamos sabendo o que se passa, enquanto a ação evolui, sem que saibamos o porquê tudo aquilo. Tanto faz entrarmos no início ou no meio do filme, nada nos será esclarecido.


                     


Motivações do ataque não aparecem no filme


                     


É justamente nesta falha que vemos o quanto ainda é difícil se fazer um filme honesto sobre o “11 de setembro”. Qualquer abordagem mais séria, realista, cheia de nuances poderá enfrentar a ira dos conservadores norte-americanos, em particular do Governo Bush. Os jovens árabes têm é claro suas motivações. Entre elas, as ações do imperialismo norte-americano no Oriente Médio, os ataques de Israel aos Palestinos e demais países árabes, o controle absoluto das reservas, da produção e da distribuição de petróleo no mundo e, sem dúvida, a identificação pelos grupos que lutam contra tudo isso de que são os EUA os responsáveis por seus males. Avançar nestas questões, faria de “Vôo 93” outro filme. Lógico que, em se tratado de Hollywood, seria demais esperar isto, mas, seja qual tenha sido a motivação dos jovens árabes que tomaram de assalto o avião da United Airlines, eles tinham uma razão para fazê-lo. Greengrass ao mostrá-los apenas rezando em árabe, identifica-os como muçulmanos e reforça o preconceito contra eles e sua religião.



                       


Ele, Greengrass, diretor e roteirista do filme, coloca-os, deste modo, no patamar de seres vindo do nada. Estão ali porque estão ali. Nada mais. Só aos personagens norte-americanos é permitida uma certa individualização. À aeromoça que promete à família deixar a aviação; o homem que quer voltar para o seio de sua família; a mulher que pede perdão aos filhos. E, sobretudo, os homens que decidem retomar o controle da aeronave e derrubar os jovens árabes. Neste instante se permite uma análise sobre a responsabilidade individual do cidadão sobre o que coletivamente lhe diz respeito. É costume pôr a culpa nos governos que, sem dúvida, são os maiores responsáveis pelos problemas que vitimam a todos, sem distinção, mas não se pode esquecer a responsabilidade do cidadão. Eles são responsáveis pelas ações de seus governos e de sua elite de poder. Não podem, simplesmente, deixar a eles as decisões que irão afetar suas vidas.



                      


No caso específico do imperialismo norte-americano, a culpa daqueles que poderiam intervir é tão grave quanto à do governo. São eles, em suma, os beneficiários da política adotada ao longo dos séculos pelos sucessivos governos norte-americanos e sua elite de poder. Seu padrão de vida advém dessa mesma política. Alcançaram-no às custas da miséria, da fome, da morte de dezenas de pessoas na África, na Ásia e na América Latina. Nem se fala da burguesia e dos conglomerados americanos e europeus e de seus aliados nos demais continentes. São eles os responsáveis pelos fatos de “11 de setembro”.Ocorre que o cidadão não pode, e não deve, se alienar de políticas que, depois, a exemplo de “11 de setembro”, venham a recair sobre a sua própria cabeça e pôr em risco a sua existência. Essa lição de “11 de setembro” se depreende em “Vôo 93”, no instante em que o grupo de passageiros que se insurgiu entra na cabine de controle da aeronave. Há luta e, percebemos, que, ao fazê-lo, eles tomam a si seu destino. 


                
                


 “Vôo 93”, no entanto, irá agradar àqueles que apenas vão ao cinema e o vê como fonte de diversão. Greengrass usa a parafernália hollywoodiana para fazer um filme de suspense. Com montagem ágil, enquadramentos perfeitos, enxuto, música que acentua seu caráter apocalíptico, ele pode nos fazer passar quase duas horas na sala de exibição sem pensar em nada. Só no que irá acontecer com os passageiros e seus “seqüestradores”. É um trunfo para quem não quer ir além disso, mas um fracasso para quem quer fazer do cinema uma boa fonte de discussão de temas contemporâneos, principalmente o que é emblemático de uma época e, cujas conseqüências, estamos sentindo em nosso dia-a-dia. Com sua ilusão, sua estrutura imagética, ele, o cinema, pode apenas reforçar preconceitos, caso de “Vôo 93”. Os fatos não existem por si, eles têm motivações e conseqüências. Não torná-los claro é, no mínimo, ser oportunista. Esse é o caso de “Vôo 93”.


 



Vôo 93 (United 93). EUA, 2006, 14 anos, 1H51. Direção/roteiro: Paul Greengrass. Elenco: Khalid Abdalla, Opal Alladin, Lewis Alsamari, Davi Alan.      
                   

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