“X-Pajé”

Marcas do etnocídio

Documentário do cineasta paulista Luiz Bolognesi revira pelo avesso a perseguição e a aniquilação cultural e física dos indígenas brasileiros.

Numa das emblemáticas sequências deste inquietante documentário “Ex-Pajé”, o agora idoso índio paiter-surui, Perpera, está sentado em silêncio, de cabeça baixa, no banco de sua casa. Destituído de suas atribuições de curandeiro em 1969, ele perdeu o que lhe dava autoridade na tribo como digno elo de sua milenar cultura. A câmera do diretor-roteirista paulista Luiz Bolognesi (14/01/1966) se mantém inerte, a espreitar seu esfacelar psicológico, religioso e humano. Não bastou a seus perseguidores lhe tirarem a herança de seus antepassados na região de Matogrosso e Rondônia, agora lhe atribuem “ligações com o demônio”.

Toda esta crise decorre da catequese feita pelo pastor evangélico, que a exemplo dos missionários católicos da época colonial, o convenceu a aderir à igreja protestante. Sua justificativa era de que “ser pajé é coisa do diabo”. Alegação semelhante feita pelos evangélicos ao estigmatizar e marginalizar os afrodescendentes por frequentar terreiros de candomblé e umbanda, religiões de origens africanas, num país de maioria negra. Este é apenas um dos vértices da forçada aculturação e etnocídio, praticado pelos colonialistas portugueses na época do império (15O0/1822), sistema mantido pelas classes dominantes atuais para se apropriar de suas terras.

Obrigado a se aculturar, Perpera se move pelas estradas como um alienígena recém-chegado à Terra. Da saída de sua aldeia de carona às ruas da cidade e ao banco onde vai tratar de suas contas, ele se mostra não pertencer àquele universo. Sente-se cada vez mais alheio, inclusive, de seu meio, pois tenta se adaptar ao que o sistema capitalista lhe impõe. Vive agora cercado de tv, fogão, geladeira, caminhonete, o onipresente celular, vendo o filho e o neto plugados às redes sociais e aos jogos on line. O único costume que mantém é se reunir com a família para o almoço e assistir à dança dos jovens no terreiro da aldeia, nem a língua preservou.

Índio Perpera quase perde a identidade

Bolognesi, no entanto, não centra sua narrativa só neste esteio dramático. Procura desde o início atrair o expectador para a multiplicidade de problemas enfrentados pelos paiteres-suruis. Cultivadores de café, eles são fustigados e atacados pelos grileiros e fazendeiros que tentam expulsá-los de suas terras. Sempre alertas para o enfrentamento, eles vivem armados de espingardas e atentos aos ataques dos invasores. Não sem razão, segundo dados do CIMI (Conselho Indigenista Missionários), divulgados em 04/12/2017, foram registrados 188 mortes e 106 suicídios nas aldeias brasileiras, em 2016, sem punição dos verdadeiros culpados.

Bolognesi foge assim ao documentário jornalístico que utiliza depoimentos, imagens antigas, documentos, para configurar sua denúncia, defender uma posição ou simplesmente informar ao expectador sobre o tema abordado. Prefere centrar sua narrativa em Perpera num contínuo, ao expor a complexidade do tema e de suas múltiplas situações. Desta forma, quase sub-repticiamente, dá conta do drama vivido pelo ex-pajé. E, notadamente, quando ele se vê num impasse, após uma jararaca atacar sua nora, e ser obrigado a visitá-la em estado grave no quarto de hospital.

Em alternadas sequências, Bolognesi mergulha o espectador em cenas nas quais o suspense não decorre da sobrevivência ou não dela. Depende mais da contraposição entre a proibição do pastor e a experiência de curador do pajé. Esta possibilidade representa, além de tudo, a retomada de sua crença e, assim, de sua autoestima. Mais do que o inteligente uso da montagem e, portanto, da técnica narrativa na criação do suspense, Bolognesi não deixa de opor a medicina alopática ocidental à medicina indígena, que usa ervas e plantas naturais. Decorre que ambas são ciências milenares, mas que naquele momento estão sendo testadas.

Convivência pacífica deve predominar

O desfecho não poderia ser mais elucidativo, Bolognesi ao mostrar que o pastor em sua ânsia de impor a suposta superioridade de sua crença, ignorou que também o pajé com suas ervas e, por extensão, os afrodescendentes em seus terreiros, têm direito a suas crenças e rituais milenares. E num país laico como o Brasil, em que todas as religiões podem ser praticadas, o mais comum é o sincretismo predominar. Nada mais democrático, quando as manifestações religiosas servem para unir e não para abrir espaço ao fundamentalismo, que só engendra a divisão e o ódio.

Não sem razão, frente aos desmandos do Governo golpista de Temer e seus asseclas, liberar as terras indígenas à expansão dos lucrativos negócios de fazendeiros, mineradoras e grileiros e, além disso, legalizar o uso de armas, só se presta à expansão do genocídio. Diferentes fontes afirmam que no início da ocupação portuguesa do Brasil, em 1.500, a população indígena do país era de cerca de dez milhões de nativos e hoje só restam 869 mil, conforme dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), no longínquo 2012. Devido a este genocídio, liberar suas terras para a exploração predatória ou não significa levar as tribos ao puro extermínio.

Em 81 minutos de narrativa, Bolognesi mostra os fios culturais que resistem à aculturação forçada. É o que se vê na sequência em que o Caciquinho (Kennedy Surui) pressiona o pai, Perpera, para que use a medicina indígena para salvar sua companheira. Sente-se a força da cultura milenar e como o ex-pajé se põe a evocar os espíritos e lembrar-se do ritual. O mesmo que fez ao dizer que não conseguia dormir com luz acessa porque eles o incomodavam. Esta chama interior também se manifesta nas crianças ao dançar no terreiro vestidas e pintadas como índios e índias. A retomada então se dá na preservação da identidade.

Mais pajés, menos intolerância no país

Com este “Ex-Pajé”, Bolognesi e representantes da entidade dos Povos e Lideranças Indígenas do Brasil foram ovacionados ao lançar, em 17/02/2018, durante o Festival de Berlim, um dos mais prestigiados do cinema, o “Manifesto dos Povos e Lideranças Indígenas do Brasil”, no qual pedem “Mais pajés, menos intolerância”. Vale destacar dois parágrafos para contextualizar a aflitiva situação vivida pelos indígenas brasileiros.

IAlguns leem na Bíblia a mensagem para invadir o mundo inteiro para forçadamente pregar o evangelho para todas as criaturas, entendendo que quem não se converter irá arder no inferno que essa própria religião inventou. Essa corrida colonial provoca ainda hoje, talvez como nunca antes, uma disputa por almas que esconde poder, dinheiro, controle de territórios, mercados de almas.

IIHoje atravessamos muitas crises, ecológica, econômica, política, a nossa frágil democracia foi atacada e os territórios indígenas estão sendo invadidos e saqueados. Junto com o ferro e o fogo, vem a conversão racista. Trocam as rezas pela bíblia e as medicinas por aspirinas. Epidemias de depressão provocam os maiores índices de suicídio do mundo manchando de sangue as lindas florestas do Brasil.

Pode-se dizer que ao assistir a este “Ex-Pajé”, o espectador está diante do Cinema Verdade, que põe em discussão a urgência da preservação da identidade não só indígena e afrodescendente, como do próprio brasileiro caucasiano em largo espectro. Em meio a este impasse, a reflexão sobre o projeto de venda de terras na região centro-oeste e norte a estrangeiros, como defende o Governo Temer, sustentado pelo PSDB e o capital financeiro, põe em alerta a necessidade de defensa do país. E vê-se, assim, que a continuar nesta toada, não só os índios se tornarão sem-terra, pois aos brasileiros, de pouco a pouco, nada restará.

“Ex-Pajé”. Documentário. Brasil. 2018. 81 minutos. Montagem: Ricardo Farias. Fotografia: Pedro J. Márquez. Roteiro/direção: Luiz Bolognesi. Elenco: Perpera Surui, Kabena Cinta Larga, Agamenon Surui, Kennedy Surui, Ubiratã Surui, Mopidimore Surui, Arildo Capané Surui.

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