A irrelevância da ONU

Em fevereiro de 2003, véspera da invasão do Iraque, o ex-secretário do governo Bush, Colin Powell, avisou ao Conselho de Segurança da ONU que a instituição caminhava para “a irrelevância” ao não respaldar a guerra imperialista contra o país árabe, então governado por Saddam Hussein.

Suas palavras seriam confirmadas poucos dias depois (19 de março) pela ação unilateral dos EUA, que desencadearam o conflito com base em alegações falsas e a despeito da oposição dos povos e de potências como China, Rússia, França (todas com assento permanente no Conselho de Segurança) e Alemanha. A ONU revelou sua irrelevância ao não evitar a guerra decretada pelo império, que se arrasta até nossos dias ceifando milhares de vidas inocentes.

Transparece nesses e noutros fatos a forma com que Washington encara a ONU. Se esta serve aos seus propósitos, tudo bem. Caso contrário, torna-se irrelevante e, neste caso, vale a lei do mais forte. O ministro Celso Amorim formulou o conceito de “multilateralismo acessório” para caracterizar tal conduta.

Esta versão peculiar de multilateralismo, amoldado aos interesses do Pentágano, foi também demonstrada com a intervenção na Líbia, que desta vez contou com o respaldo, não se sabe se cínico ou constrangido, do Conselho de Segurança da ONU, que pode ser bem melhor definido, depois disto, como “Conselho de Insegurança”, conforme propõe o presidente da Bolívia, Evo Morales.

“A agressão constitui uma vergonha para a humanidade”, asseverou o líder indígena, observando que agora as potências capitalistas que participaram da aventura liderada pela Otan pelejam entre si para decidir quem será dono do petróleo líbio. Prevalecem os interesses de “seguir acumulando capital em poucas mãos, mãos das oligarquias, das transnacionais”, complementou.

O presidente Barack Obama, fiel a tais interesses, reafirmou a visão de um multilateralismo de conveniência no discurso que pronunciou nesta quarta-feira, 21, após a abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, feita pela presidente Dilma Rousseff. O chefe da Casa Branca anunciou a oposição dos EUA ao reconhecimento do Estado palestino, pleito apoiado pela esmagadora maioria das nações representadas na ONU.

A opinião da maioria, no caso, não tem maior efeito prático além da repercussão política, pois Tio Sam goza do poder de veto no restrito Conselho de Segurança e já avisou que vai barrar a pretensão palestina. Obama afirma que as Nações Unidas devem ficar à margem do conflito entre judeus e palestinos.

Segundo ele, a paz na região "não virá de resoluções ou declarações da ONU. No final das contas, são os israelenses e os palestinos, e não nós, que devem chegar a um acordo sobre as questões que os dividem: sobre fronteiras e segurança; sobre refugiados e Jerusalém".

Em contrapartida, ele pretende que a organização aprove sanções imediatas contra o governo da Síria. “Não há desculpa para a falta de ação”, esbraveja. Também não se esquece de reiterar as ameaças ao Irã e Coreia do Norte. "Se eles continuarem em um caminho à margem da lei internacional, eles devem enfrentar mais pressão e isolamento", dispara.

Não será necessário muito esforço intelectual para perceber o uso de um peso e duas medidas, conforme se trata das notórias barbaridades cometidas por um aliado (Israel) contra todo um povo ou da ação de governos que não rezam pela cartilha do imperialismo. Com Bush ou sob Obama, a política externa dos EUA mantém o mesmo caráter imperialista, agressivo e opressor.

A crise mundial, iniciada pela contração do mercado norte-americano, evidenciou o declínio da potência capitalista hegemônica na esfera econômica, assim como o esgotamento da ordem mundial herdada do pós-guerra. Mas a supremacia militar ainda confere ao decadente império o poder de ditar a agenda política em diferentes regiões do mundo, com destaque para o Oriente Médio.

Certamente tudo isto está em flagrante contradição com a nova realidade que emergiu do desenvolvimento desigual das nações, o deslocamento da dinâmica industrial do Ocidente para o Oriente, a ascensão da China, as mudanças políticas na América Latina e a chamada “primavera árabe”, que EUA e Europa procuram desvirtuar e usar em proveito próprio.

A necessidade de uma nova ordem mundial que reflita as transformações objetivas em curso no globo cobra urgência. A presidente Dilma a ela se referiu no discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, quando denunciou a falta de representatividade do Conselho de Segurança (CS) e pediu sua ampliação.

A mera incorporação de novos membros ao CS, embora possa democratizar certas decisões, não vai resolver o problema. Os Estados Unidos já demonstraram que, quando uma decisão da ONU não está em sintonia com seus interesses, será simplesmente ignorada. Basta ver o destino das resoluções que apontam a necessidade de acabar com o bloqueio econômico a Cuba, adotadas desde 1992.

Em 2010, 187 países votaram a favor da ilha socialista. EUA e Israel ficaram isolados, contra. Todavia, o bloqueio continua atestando a irrelevância e a desmoralização da ONU, e a arrogância infinita do império. E nesta mesma quarta em que Obama falou contra o reconhecimento do Estado palestino, a Otan anunciou a decisão de prolongar por mais três meses sua “missão humanitária” na Líbia.

Os fatos sugerem que não será possível avançar na direção de uma nova ordem mundial, realmente multilateral, democrática e pacífica, sem antes derrotar o imperialismo que, como disse Lênin, não é mais que o capitalismo dos nossos dias. “Os inimigos da humanidade”, aponta Evo Morales, “estão identificados: são o capitalismo e o imperialismo. Mudar isto é o desafio e a batalha permanente”.