Aborto, excomunhão e um bispo sem piedade

O que uma equipe de médicos e funcionários públicos mereceria ao salvar uma menina de nove anos de uma situação traumática?


 


No mundo racional das pessoas de bem, esta equipe mereceria reconhecimento, respeito e homenagem. Mas na compreensão e sem piedade do bispo de Recife e Olinda, dom José Cardoso Sobrinho, a equipe merece a excomunhão.



Estuprada pelo padrasto, a menina estava grávida de gêmeos e, para salvar sua vida os médicos da Maternidade Cisam, da Universidade de Pernambuco, no Recife, fizeram o que a lei e a ciência determinam: a pedido da mãe da menina, foi realizado um procedimento médico, através de medicamentos, que eliminou os fetos do ventre da criança.



Foram punidos com a excomunhão, uma punição muito grave para os católicos, que corresponde à expulsão da comunidade. O bispo extendeu a punição a todos os envolvidos no caso, poupando apenas a menina pelo fato dela ser ''de menor'', conforme suas palavras. Para ele, o estupro cometido contra uma criança de nove anos de idade é um crime menor e, por isso, deixou o padrasto fora da excomunhão.



O bispo Sobrinho não é um homem estúpido. Ele sabe que uma criança de nove anos de idade, com 33 quilos de peso, não tem estrutura física nem psicológica para suportar uma gravidez, ainda mais uma gravidez de gêmeos. Sabe também de todas as perversas consequências sociais que a criança e sua família enfrentariam se a gravidez fosse levada adiante. Mas nenhuma razão humanitária foi levada em conta pelo bispo para defender seus dogmas, que são desumanos e ofendem a compreensão de nosso tempo.



Não bastasse a iniciativa da excomunhão coletiva, um advogado da Arquidiocese de Olinda e Recife, Márcio Miranda, anunciou que vai apresentar uma denúncia de homicídio contra a mãe da menina por ter autorizado o aborto. Como é um aborto amplamente amparado pela lei brasileira, só resta entender a iniciativa do advogado como uma ameaça inquisitorial.



A continuar sendo comandada por gente obtusa como o bispo Sobrinho, a igreja católica, que tem no seu currículo a Inquisição (hoje chamada Congregação para a Doutrina da Fé) e outras perversidades, como as já frequentes acusações de pedofilia, perderá cada vez mais o respeito e a voz diante da sociedade.



Em sua cruel e fora de época defesa dos dogmas da igreja, o bispo afrontou a sociedade, nostálgico talvez do remoto passado em que a voz dos púlpitos tinha força de lei para toda a sociedade. Mas, no caso, a reação foi imediata. O presidente Lula considerou a decisão do bispo lamentável; o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, disse que ela foi ''radical'' e ''inadequada''. A médica  Fátima Maia, diretora do Cisam, e que é católica, deu ''graças a Deus'' por estar ''no rol dos excomungados'', e que não se arrepende de ter ajudado a menina. Em Brasília, Valéria Melk, representante do movimento Católicas Pelo Direito de Decidir se declarou indignada pela atitude do bispo: ela é ''uma crueldade'', disse.



Como bem lembrou o jornalista Ricardo Kotscho: ''E pensar que esta mesma Arquidiocese de Olinda e Recife já foi ocupada por um homem como dom Hélder Câmara, o bispo que nos tempos mais sombrios da ditadura militar, arriscava a própria vida para salvar a vida dos outros''.