As críticas de Abdenur ao Itamaraty: muito barulho por nada

O ex-embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Roberto Abdenur, é um dos espadachins – juntamente com outros, como os embaixadores Rubens Fonseca, Celso Lafer e Sérgio Amaral – do americanismo no Itamaraty. É o que se conclui da repercussão de sua entrevista para a revista Veja (7 de fevereiro de 2007), que é muito instrutiva a respeito daquilo que a direita e os conservadores brasileiros consideram como informação e análise, multilateralismo e ideologia.


 



Primeiro, porque, paradoxalmente, a entrevista de Abdenur é um elogio da política externa do governo Lula, destacando seus aspectos positivos. “Acho muito bom o que o governo tem feito para abrir novas frentes de comércio com países árabes, com o Sudeste Asiático, com a Ásia Central, com a África”, disse. “Acho muito positiva também a forma inovadora de trabalho com o Ibas (grupo que reúne Índia, Brasil e África do Sul). É a primeira vez que três países grandes, de três continentes diferentes, se unem para buscar iniciativas conjuntas. Acho que o Brasil tem conduzido com amplo equilíbrio e proficiência as negociações da Rodada de Doha. O Brasil é um jogador decisivo”, afirmou, destacando a atuação brasileira no G-20 e no  Haiti. “Enfim, houve acertos”.


 



Ele reconhece também que a relação com os Estados Unidos “prosperou significativamente nos últimos anos”, e “nunca esteve tão bem”. Mesmo a imagem do governo, que a sanha da direita imagina maculada pela sórdida campanha de 2005 e 2006, é “positiva”, disse, e “os escândalos de corrupção não repercutiram muito por lá”. Ao contrário, o “governo Lula tem merecido respeito mundo afora por conciliar uma política econômica pragmática com políticas sociais efetivas e uma política externa séria”.


 


Sendo assim, onde está o problema, que levou inclusive a Comissão de Relações Exteriores do Senado convidar o embaixador aposentado a esclarecer pontos de sua entrevista? A convite, veja-se!, da figura ilesa do senador tucano Eduardo Azeredo, aquele que era presidente do PSDB e teve que renunciar devido ao envolvimento com a montagem do valerioduto em Minas Gerais, na campanha eleitoral de 1998.


 


É aqui que entra em cena aquela mesma postura servil que culminou na maior façanha da diplomacia tucana – a submissão do ministro Celso Lafer à vexatória revista no aeroporto de Washington, em 31 de janeiro de 2002. O então chefe da diplomacia tucana aceitou inclusive tirar os sapatos (cena que repetida, na mesma viagem, mais duas vezes), quando foi aos EUA para  levar a solidariedade e apoio de nosso governo aos estadunidenses na luta contra o terrorismo, quatro meses depois das Torres Gêmeas de Nova York terem sido derrubadas.


 


Este é o ponto, o cavalo de batalha da direita na repercussão da entrevista de Abdenur: a defesa da primazia da relação com os EUA. Os conservadores chamam de ideológica a defesa da soberania e da autonomia de nosso país e o fim do alinhamento automático com Washington da submissão a seus interesses geopolíticos e diplomáticos. “A idéia do Sul-Sul como eixo preponderante”, disse, “revela um antiamericanismo atrasado. Isso tem se manifestado dentro do Itamaraty de diversas maneiras”, entre elas, segundo ele, a recomendação de “certas leituras” para os diplomatas, “livros que têm viés dessa postura ideológica”. Considerou “exagerada” a dimensão “dada à cooperação entre os países menos desenvolvidos como eixo básico da nossa diplomacia” pois, pensa, a valorização da “dimensão Sul-Sul” é “um substrato ideológico vagamente anticapitalista, antiglobalização, antiamericano, totalmente superado”. Condenou também o fim das negociações sobre a Alca, que defendeu de forma tímida, diga-se de passagem, pois os avanços alcançados pela diplomacia dirigida pelo ministro Celso Amorim são consistentes nesta área e praticamente enterraram aquela idéia imposta pelo governo dos EUA. Em outra entrevista, ao jornal O Estado de S. Paulo (9 de fevereiro de 2007), ele foi além e bateu duro – como a direita tem feito – no Mercosul e na integração da América do Sul. E, como não poderia deixar de ser, colocou a Venezuela no alvo de seus ataques ao Itamaraty, reiterando o argumento da direita de que a experiência revolucionária dirigida pelo presidente Chávez é uma ameaça à democracia.


 



Ele condenou ainda “a idéia de que o Brasil, para avançar no mundo, tem de estar junto com seus vizinhos numa grande coesão”, deixando clara sua divergência sobre “a idéia de que o Brasil não tem futuro sem o Mercosul, ou de que o Mercosul é o destino do Brasil” – teses que tem sua matriz justamente na diplomacia dos EUA


 


A defesa do alinhamento preferencial com os EUA foi o eixo principal das críticas de Abdenur, e da repercussão de sua entrevista, inclusive de sua convocação para “esclarecer” o que disse perante o Senado. Na entrevista a O Estado de S. Paulo ele insistiu neste ponto. “O que critico é um certo ranço ideológico que tem, entre outras coisas, esse sentido de anti-americanismo”. O Brasil, enfatizou, “precisa parar de preocupar-se em ser diferenciado dos Estados Unidos”.



Outro aspecto que merece alguns comentários é a alegada defesa da convivência de múltiplas opiniões na diplomacia brasileira. A insinuação feita pelos críticos da política externa do governo Lula da existência de uma ideologização da diplomacia e do unilateralismo que decorreria dela, tem um forte odor de hipocrisia. “Há intolerância à pluralidade de opinião”, disse Abdenur para Veja.



Esta opinião contraria a experiência vivida pelo próprio Abdenur que, como outros diplomatas que pensam como ele, foram mantidos em seus cargos, mesmo divergindo – até publicamente – da política externa dirigida pelo chanceler Celso Amorim.
Experiência oposta à do período tucano, quando – aí sim – a divergência de opiniões foi tratada a ponta pés. A oposição à Alca por, exemplo, era inaceitável. Foi por ser contrário a ela que, em abril de 2001, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães foi demitido de seu cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty.



A reação às declarações do embaixador Abdenur demonstram, finalmente, a enorme capacidade da imprensa das grandes empresas, dos comentaristas ligados à direita e dos políticos conservadores fazerem alarde a partir de alegações que tem uma frágil base factual sem base em fatos. “Estão fazendo muito barulho por nada”, comentou Celso Amorim, invocando Shakespeare, a respeito da marola provocada pelas entrevistas de Abdenur. O que existe, disse, “é uma patrulha ideológica às avessas”. Ele tem razão. Os caçadores de bruxas de plantão voltam-se contra aqueles que, retomando a tradição histórica da diplomacia brasileira, tem colocado o Brasil em um posto de destaque nas relações internacionais, tirando-o da subalternidade a que foi relegado nas últimas décadas.


 


A própria relação de livros que, segundo Abdenur, seria a prova da ideologização do Itamaraty, revela essa retomada da tradição diplomática que vem desde os tempos do Barão do Rio Branco. Entre eles está, por exemplo, o livro do embaixador Álvaro Lins, um notável diplomata brasileiro das décadas de 1950 e 1960, emérito defensor da soberania do país na relação com todos os demais, inclusive as potencias dominantes.