Desmandos e desvios da polícia inglesa contra um brasileiro

Que não se repita – foi esse o tom, de bronca dada a alguém apanhado numa ação condenável, que marcou a […]

Que não se repita – foi esse o tom, de bronca dada a alguém apanhado numa ação condenável, que marcou a reação do governo brasileiro ante a detenção, por nove horas (ou onze, segundo a vítima), neste domingo (18), do cidadão brasileiro David Miranda, pela polícia inglesa, no aeroporto de Heathrow, em Londres. Além da arbitrariedade da detenção, a polícia inglesa roubou – esta é a palavra correta para designar outra ação arbitrária – equipamentos eletrônicos de Miranda, como laptop, celular, pen drives, câmera, cartões de memória, DVDs e consoles de videogames.

David Miranda estava em Londres de passagem, numa escala do voo em que voltava da Alemanha. Seu “crime”: ser companheiro de Glenn Greenwald, o jornalista do The Guardian que, em junho, publicou as denúncias de Edward Snowden que revelaram ao mundo a espionagem eletrônica feita pelo governo dos EUA a pretexto do combate ao terrorismo.

Não é a primeira vez que a polícia britânica comete uma arbitrariedade contra um cidadão brasileiro inocente, a pretexto de combate ao terrorismo. Num grave episódio anterior, essa mesma polícia assassinou em 2005 o brasileiro Jean Charles de Menezes, de 27 anos, no metrô de Londres; alegou, para justificar a barbárie, que ele era suspeito de terrorismo.

Em julho, o avião do presidente Evo Morales, da Bolívia, foi proibido de sobrevoar os espaços aéreos de Espanha, França, Itália e Portugal, sendo desviado para um pouso forçado em Viena (Áustria), numa clara violação de imunidades diplomáticas devidas a um chefe de Estado. A suspeita da CIA, a central de espionagem dos EUA, que impôs àqueles países europeus a prática escusa, era de que Snowden estivesse a bordo do avião boliviano.

A detenção arbitrária de Miranda foi uma tentativa de intimidação para evitar que o jornalista Glenn Grenwald, radicado no Rio de Janeiro, continue a divulgar informações sobre as ações de espionagem praticadas pelos EUA.

A brutalidade da polícia inglesa é típica de países totalitários, como a qualificou o presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Wadih Damous. Ela é característica das ações do imperialismo, mesmo decadente, como o britânico. Diante das reações contrárias desencadeadas no Brasil e no próprio parlamento britânico, o governo do primeiro-ministro conservador David Cameron tentou defender sua polícia alegando, de forma absurda, o “dever de proteger as pessoas e a segurança nacional”.

Contudo, o “combate ao terrorismo” acoberta violações contra a democracia, contra os direitos humanos e, também, contra a soberania nacional em atentados que envolvem não apenas países como o Brasil e a Bolívia, mas também nações do continente europeu, como se viu no episódio contra Evo Morales.

O caso de David Miranda é revelador ainda da escalada da submissão britânica aos desejos de Washington. A polícia inglesa diz que agiu por conta própria, e a diplomacia estadunidense diz ter sido avisada da ação, mas que não interferiu no caso. Isto é, de duas uma: ou ambas as chancelarias, de Washington e de Londres, estão mentindo, ou o governo inglês revela um grau de subalternidade que o leva, para agradar aos chefões norte-americanos, a adiantar-se e cometer barbaridades como a praticada contra David Miranda, em defesa dos interesses dos EUA.

Autoridades britânicas – desde o governo do primeiro-ministro David Cameron até o embaixador no Brasil, Alex Ellis – tentaram reduzir o caso a uma ação policial prevista pela lei de combate ao terrorismo.

Não é, e já no domingo (18), informado do atentado cometido, o Itamaraty divulgou nota condenando a ação brutal da polícia britânica dando a verdadeira dimensão do caso. “Trata-se de medida injustificável por envolver indivíduo contra quem não pesam quaisquer acusações que possam legitimar o uso de referida legislação. O governo brasileiro espera que incidentes como o registrado hoje com o cidadão brasileiro não se repitam", disse a nota. Num pronunciamento, o chanceler Antônio Patriota foi ainda mais contundente. "Continuamos a assistir a alguns desmandos e desvios nessa questão do combate ao terrorismo”. O responsável pelo Itamaraty exigiu o “combate ao terrorismo” se inspire nos ideais de “multilateralismo, direito internacional e racionalidade".

As alegações do governo britânico e da polícia inglesa em defesa de sua ação arbitrária são inaceitáveis. Elas repetem práticas colonialistas há muito superadas. Nestes tempos de luta pela afirmação da soberania nacional de todas as nações, elas revelam a permanência nociva da afirmação de uma suposta desigualdade de direitos entre as nações. O mundo mudou e esta pretensão ilegítima, inaceitável no plano político, já não corresponde à distribuição do poder no mundo.

Nestas condições, tem razão a senadora comunista Vanessa Grazziotin ao propor, em paralelo à reprimenda da diplomacia brasileira ao governo britânico, a convocação do embaixador britânico Alexander Ellis para dar explicações ao Senado brasileiro sobre a ação inaceitável da polícia de seu país.