Sempre é bom lembrar a influência africana na cultura brasileira. Em geral, desprezada, marginalizada, negada. Influência sentida na religião, na culinária, na formação étnica, social, política e cultural. Ainda mais em tempos sombrios como esta passagem histórica com a extrema-direita com o aparato estatal nas mãos. Com apoio da mídia, de parte do Judiciário e da maioria no Parlamento, os extremistas tentam apagar da memória popular a herança africana em nossas vidas.
Por Marcos Aurélio Ruy*
Publicado 04/07/2019 21:50 | Editado 13/12/2019 03:29
Os milhões de seres humanos escravizados, trazidos da África, transformaram a cultura brasileira numa das mais diversificadas do mundo. No caso da música popular brasileira então a herança africana extrapola pelos poros.
Afoxé, maracatu, ijexá, coco, jongo, carimbó, lambada, maxixe, maculelê, mas principalmente o chamado primo pobre do jazz norte-americano, o chorinho, o frevo e o samba formando uma identidade nacional que absorveu manifestações de outras culturas como o carnaval para criar algo diferente. Algumas músicas analisadas aqui reportam a essa herança cultural e à história da diáspora negra com sua riqueza cultural e social.
Como a canção África Brasil, de Jorge Ben Jor, gravada com o nome de Zumbi – o último líder do mais famoso quilombo da história do país, o dos Palmares, morto em 1695, no dia 20 de novembro e por isso essa data virou o Dia Nacional da Consciência Negra. Em 1974, dois anos depois de sai composição, foi rebatizada com arranjo musical modificado.
Ben Jor é singular na música popular brasileira ao criar bases para a criação do que se convencional chamar samba-rock, por misturar os gêneros norte-americanos também de matriz africana como o soul, o funk e o rock com o samba.
A poesia da canção sincopada com instrumentação eletrônica e atabaques ressalta a organização quilombola como uma das mais importantes formas de resistência e contraponto ao sistema escravista. Além de denunciar o racismo e a exploração do trabalho escravo dessa população, como nos versos:
O próprio Ben Jor cantou Xica da Silva, uma escrava alforriada que casou com um contratador de diamantes e se tornou um mito na sociedade local, não habituada a ver uma mulata na alta sociedade. Mentalidade escravocrata que permanece incólume em setores de uma elite rancorosa que não suporta ver pobre viajando de avião ao seu lado.
Joias, roupas exóticas
Das Índias, Lisboa e Paris
A negra era obrigada
A ser recebida
Como uma grande senhora”
Já a jovem MC Luana Hansen canta as Negras em Marcha, com participação especial de Leci Brandão, num rap mesclado com instrumentação do candomblé e da umbanda para denunciar a brutalidade com que são tratadas as mulheres negras, na base da pirâmide social, menosprezadas pelo mercado de trabalho, vilipendiadas pelo machismo, sexismo e racismo. Diz uma estrofe dessa pujante poesia cantada com voz marcante e instrumentação arrojada.
Luana atualiza o tema ao cantar a luta das mulheres negras que estão cansadas
A mulher negra se mobiliza, organiza e segue em frente para defender seus direitos e a vida de seus filhos assassinados diariamente nas favelas e nos bairros pobres.
Gilberto Gil não poderia ficar fora de uma seleção musical que ressaltasse a influência africana em nossa cultura. Aqui tem destaque A Mão da Limpeza. O próprio Gil conta que compôs esse funk (gênero musical dos negros norte-americanos, que se espalhou pelo mundo e ganhou força nas periferias das grandes cidades brasileiras) para desdizer um dito popular criado pelos brancos dominadores de que “negro, quando não suja na entrada, suja na saída”.
O clipe da música mostra Gil com a cara pintada de branco e Chico Buarque de negro interpretando essa canção que ironiza o racismo forjado ideologicamente para massacrar uma população inteira e manter privilégios de uma minoria, quase num apartheid não oficializado.
Considerada a cantora do milênio pela TV britânica BBC, Elza Soares interpreta como só ela sabe o rap A Carne, de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti. A música soa como um lamento e a poesia denuncia o genocídio negro para lembrar que 70% dos homicídios no País atingem a população negra, na maioria jovens da periferia.
E, para finalizar, a lindíssima As Caravanas. de Chico Buarque, pinta o quadro do Brasil atual, onde “gente ordeira e virtuosa” teme a população negra de “torso nu”. O autor faz referência aos navios negreiros da poesia de Castro Alves, comparando-os às prisões brasileiras nas quais a maioria é negra, parda e pobre. Chico atualiza o poema ao denunciar o desejo expresso da elite branca em “bater e matar”, um retrato cruel do racismo brasileiro agora no controle do Estado.
* Marcos Aurélio Ruy, jornalista, é colaborador do Prosa, Poesia e Arte