A redemocratização do Brasil teve um hino: Vai passar

A música surgiu em 1984 para tomar conta de um país desolado com a derrota na Câmara dos Deputados da emenda Dante de Oliveira, que restabelecia as eleições diretas para presidente

Manifestação das Diretas Já! (Foto: Repordução)

Assim como a música O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, foi considerada o hino da Anistia e eternizada por Elis Regina, o samba Vai Passar, de Chico Buarque e Francis Hime, também marcou época.

A música surgiu em 1984 para tomar conta de um país desolado com a derrota na Câmara dos Deputados, no dia 25 de abril, da emenda Dante de Oliveira, que restabelecia as eleições diretas para a Presidência da República.

Num tom otimista, o samba convoca o povo para presenciar um novo período na história que iria marcar o fim da ditadura militar. “Vem ver de perto uma cidade a cantar/A evolução da liberdade/Até o dia clarear”.  

O povo nas ruas, tal qual o Movimento das Diretas Já, apoiava a eleição de Tancredo Neves pela via indireta no colégio eleitoral.

Tancredo venceu Paulo Maluf, candidato da ditadura, pelo placar de 480 favoráveis contra 180. Era o fim da ditadura!

Quem viveu essa época sabe que Vai passar interpretou esse momento político de forma sublime e fez o povo cantar de Norte a Sul do país.

“É uma alegoria crítica dos anos sombrios e, ao mesmo tempo, uma celebração da resistência e da esperança, características da produção musical de Chico Buarque naquele período”, considera o site Memorial da Democracia.

O Memorial lembra que, em 1969, no auge da repressão, Chico havia composto Apesar de Você, samba que se tornou o símbolo da resistência, mesmo proibido de ser tocado em público.

O jornalista Humberto Werneck contou que recebeu de Chico duas fitas cassetes com todo o registro da história da composição:

“Um dia eu cheguei na casa dele e ele falou: ‘Olha, tem uma coisa aqui que você vai gostar’. E me mostrou uma fita. E nessa fita ele está tentando dar uma forma final a um refrão do samba Dr. Getúlio, que ele tinha feito com o Edu Lobo pra peça de mesmo nome, do Ferreira Gullar e do Dias Gomes. Então você vai ouvindo aquele refrão, é ele cantando e tocando violão, e de repente você percebe: daquela música nasce uma outra. Feito um galho. Mas é um galho de uma outra árvore. Com uma emoção extraordinária, percebi que era o ‘Vai passar’. Que estava começando a nascer aquela coisa muito informe, aquela coisa meio fetal ainda, mas já se percebia a música ali. Foi uma experiência absolutamente emocionante pra mim. Você percebia que ele ia tocando aquele pedacinho de música, caía outra vez no refrão de ‘Dr. Getúlio’, voltava pra ‘Vai passar’, ainda sem letra, sem nada. Eu percebia que ele se acercava da música como se a música estivesse pronta fora dele e ele estivesse tentando pegar aquilo com a mão.”

Chico Buarque – Divulgação

O próprio Chico explica esse processo:

“Eu tinha até registrado o momento em que estava fazendo essa música. Eu estava terminando uma música com o Edu e comecei a ter a ideia desse samba. Comecei a ter a ideia musical e algumas pinceladas do que eu queria como letra. Foi na época daquela euforia das diretas. Eu imaginei que se podia fazer um samba composto a vinte mãos. Juntei lá em casa um dia uma porção de amigos e mostrei o samba do jeito que estava. A música não estava pronta. Tinha um problema, eu não conseguia chegar ao tom original. A música ia modulando, e eu não conseguia voltar. E foi o Francis que, no fim, virou meu parceiro e consertou a melodia. Aí começamos a cantar. É claro que foi uma bebedeira e não saiu letra nenhuma. Eu acabei chegando à conclusão de que a música só pode ser feita no máximo por duas pessoas. A não ser esses sambas de carnaval. Cada um começou a dar um palpite mas não saiu nada. Era uma ideia bonita. Fiquei depois um ano com ela parada e falava: ‘Um dia vou fazer’. Aí desisti. Acabei retomando um ano depois e terminei sozinho a letra.”

VAI PASSAR
(Chico Buarque e Francis Hime)

Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais

Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações

Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava Carnaval
O Carnaval, o Carnaval
(Vai passar)

Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar
Meu Deus, vem olhar
Vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear

Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral
Vai passar.

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