As Minas do Rei Salomão: racismo modo aventura

Ao traduzir para o português o clássico de Henry Rider Haggard, Eça de Queiroz imprimiu seu estilo inconfundível – mas também, com todas as cores vivas, o eurocentrismo racista

Na história mundial da prosa de ficção, o gênero “aventura” tem seus clássicos. Um deles é As Minas do Rei Salomão, de Henry Rider Haggard, autor exemplar deste tipo de literatura.

Nascido na Inglaterra em 1856, Haggard publicou este seu As Minas em 1885 e, com ele, fez fortuna. Apesar de não ser, a rigor, contemporâneo e tampouco conterrâneo do estadunidense Edgar Rice Bourroughs, criador de Tarzan, (Bourroughs nasceu em 1875 e publicou Tarzan dos Macacos em 1912), foi, ao lado deste, responsável por firmar no imaginário mundial uma África bem ao gosto do dominador branco.

Este que aqui escreve suas impressões de leitura adquiriu o livro do autor britânico num destes quiosques do Metrô paulistano que vendem encalhes editoriais a R$ 3 o exemplar. Comprei por conta da tradução de Eça de Queiroz, fundador do realismo literário em Portugal, autor, dentre outras obras, de Os Maias e O Crime do Padre Amaro.

Está aqui na edição que tenho em mãos o estilo inconfundível do romancista português: objetividade descritiva e narrativa – e aquela ponta de humor mal contida entre a galhofa lisboeta e a elegância dândi inglesa.

Lá está também, no entanto, e com todas as cores vivas, o eurocentrismo racista nosso velho conhecido, exemplarmente expresso na truculenta deselegância do arrogante narrador – personagem Allan Quatermain, ícone do colonialismo inglês, protagonista de uma série de histórias cheias de peripécias a la Indiana Jones (Quatermain, aliás, é a inspiração para o personagem cinematográfico de Spielberg).

Descrevendo os antagonistas da trama – de um lado, Tuala, rei dos cacuanas, uma das tribos zulus da África, e, de outro, sua sacerdotisa, Gagula –, diz o aventureiro:

“Nunca em minha longa vida encarei um homem mais repulsivo. E ainda às vezes revejo, ante mim, aquela face horrível com os beiços muito grossos, ressudando sensualidade, as ventas enormes e chatas de fera, e o olho único (porque o outro era apenas um buraco negro) atrozmente brilhante, de um brilho frio e cruel.”

“Atrás dele vinha Scragga e uma outra criatura estranha, equívoca, que nos pareceu uma macaca – uma macaca velhíssima e friorenta, toda embrulhada em peles.”

Mais atrás, ao incorporar, à comitiva que partia em demanda das minas do rei bíblico, um zulu de porte majestoso que atende pelo nome Umbopa, Quatermain registra um diálogo entre o barão, que financia a aventura, e este mesmo zulu. Diante da oratória de quem ele considera selvagem, Quatermain sai-se, pela pena de Eça, com este trecho:

“Parou. E subitamente rompeu numa dessas rajadas de poesia, frequentes nos zulus, que tanto surpreendem os que pela primeira vez as testemunham, e que, apesar de nevoentas, redundantes e decoradas de geração em geração, mostram que se a raça não é inteligente, é imaginativa.”

Não bastasse o racismo, o “cavalheiro” Quaterman (assim o personagem se autodefine) é um caçador de elefantes, contente em dizimar, de uma só vez, nada menos que nove de uma manada, por conta do valioso marfim de suas presas:

“Tínhamos morto nove elefantes. Dois longos dias levamos a serrar-lhes os dentes e a enterrá-los com cuidado debaixo de uma árvore enorme, que se destacava isoladamente na vasta planície e formava um ‘sinal’ inesquecível. Era um esplêndido lote de marfim! Só os dentes do ‘patriarca’ pesavam (tanto quanto pude avaliar) uns 170 arráteis. (…) Ao romper do terceiro dia, levantamos o acampamento – todos nós fazendo votos, no silêncio de nossa alma, para que nos fosse dado voltar um dia! Eu, mentalmente, acrescentava: ‘Voltar e desenterrar este rico marfim!”

Ainda não encontrei, assim tão à mostra e com tamanho estilo, na literatura dos países centrais, a natureza predatória e venal do colonialismo.

Por fim, vale uma nota sobre o surrado destino manifesto das nações anglo-saxãs presente na obra de Haggard: o de civilizar páramos selvagens e legitimar poderes em nações alheias.

Passada a metade do livro, os europeus se metem numa disputa dinástica, e tramam, com um príncipe que à terra cacuana retorna e alguns chefes militares, a deposição do feroz rei Tuala. Põem a serviço do príncipe sedicioso suas armas, mas, exigem que ele mude os costumes bárbaros de sua gente, baseados em rituais sacrificiais, e incorpore as instituições liberais inglesas. Quatermain, menos idealista, acrescenta ao pacote o acesso ao ouro e à prata das Minas do Rei Salomão. O príncipe topa e partem todos para a luta.

Enfim, o livro é de fato um clássico da literatura de aventura – mas igualmente colonialista – do século 19. Obras assim, embora tão longe no tempo suas primeiras edições, serviram e ainda servem de base para toda uma filmografia que apresenta como meros boçais inferiores os povos negros da África, e o continente, como quintal privado europeu. São narrativas muito bem escritas, vibrantes, absorventes, populares, elaboradas e traduzidas competentemente em diferentes línguas, e portadoras eficazes do modo de ver e dominar das elites econômicas das nações centrais.

Se são isso, vale a pena então conhecê-las e curti-las? Tanto quanto vale assistir a um destes filmes arrasa-quarteirão de Hollywood. Basta não se esquecer do filtro.

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