Celso Marconi: Oshima e a dignidade do cinema

Sinceridade com que falam do mundo social que os cercou une o japonês Nagisa Oshima e o braslileiro Nelson Pereira dos Santos

O cineasta japonês Nagisa Oshima (1932-2013)

Se eu fosse comparar o cineasta Nagisa Oshima com algum brasileiro, sem dúvida o compararia com o nosso maior cineasta, Nelson Pereira dos Santos. Isso por algo que caracteriza a produção dos dois: a sinceridade com que falam do mundo social que os cercou.  

Em qualquer filme de Nelson ou em qualquer filme de Nagisa, temos sempre a descoberta do que é verdadeiro em cada cena que apareça ou em qualquer personagem. Não interessou a eles fazer cinema para distrair a humanidade, mas colocar no mercado filmes que mostrassem o que é ou era o mundo do ser humano. O homem e a mulher são o que encontramos para conhecer vendo seus filmes, e não super-heróis, embora possamos conhecer heróis nas obras. Heróis verdadeiros como o homem que passa fome com a mulher e o filho ou o homem que se suicida para continuar com a cortesã porque a ama.

Já passei épocas vendo muitos filmes de Nelson Pereira e agora estou vendo ou revendo filmes de Nagisa. Penso que nessas etapas de minha vida ganhei muito conhecimento, tanto quanto ganhei quando estava estudando o trabalho de um antropólogo como Claude Lévi-Strauss. Nesta matéria, comento alguns aspectos de três filmes de Nagisa.

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CANÇÕES LASCIVAS DO JAPÃO

É bom ver filmes antigos pouco conhecidos de cineastas completos como o japonês Nagisa Oshima, e isso 50 anos depois de eles terem sido feitos, como é o caso de Nihon Shunka- kô. O filme realizado em 1967 trata de quatro jovens residentes no interior do Japão, que vão passar alguns dias em Tóquio para prestar exame de admissão à escola média. Realmente, Oshima mostra alguns dias de farra de quatro amigos, mas isso com uma densidade dramática que ao mesmo tempo lembra filmes de Truffaut e Godard sem deixar de mostrar que eles, os estudantes, estão vivendo na sociedade japonesa e com todo seu peso tradicional.

Canções Lascivas do Japão é um dos primeiros filmes feitos por Nagisa Oshima nos anos 60, mas demonstra hoje uma maturidade já de grande cineasta. Mostra uma grande força cinematográfica, onde a plasticidade da imagem é compacta. Não é uma obra simples, mas um trabalho de muita beleza visual. Oshima consegue dar aos seus filmes uma unidade entre imagem e sonoridade – e nesse filme isso se realça. Talvez o título sugira um filme musical. Sem dúvida, temos uma narrativa que se liga, ou melhor, se mantém sempre dentro dessa musicalidade.

O filme tem uma certa ligação com a estrutura dos filmes de Godard, no sentido de que se parece com uma obra de artes plásticas. Ele pode ser visto como uma criação plástica, isto é, de forma independente do conteúdo da estória você tem a força da arte. Mas ao mesmo tempo tem muito conteúdo, diz muito e particularmente sobre a cultura do país. Os japoneses não podem reclamar que Nagisa Oshima, por fazer um cinema inspirado no cinema francês, esqueceu o seu país. Todos os personagens são tipicamente nipônicos, inclusive do ponto de vista da forma como se comportam visualmente.

Quando fez Canções Lascivas, Oshima mostrou que já possuía uma formação cultural bastante aprofundada e sabendo analisar a sociedade da época, tanto em referência à Europa quanto à sua terra. Uma obra-prima, essa pequena produção. Um retrato excepcional do que pensavam e tentavam viver os jovens. Chegamos à conclusão de que até hoje a alienação mostrada naqueles anos ainda continua. Com mais profundidade.

(Olinda, 6/6/2020)

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NOITE E NEBLINA NO JAPÃO

Nagisa Oshima fez esse filme, Nihon no yoru to kiri, em 1960 e foi inspirado no curta-metragem de muito sucesso do cineasta francês Alain Resnais, Noite e Neblina, que inclusive foi lançado no Recife em CD por uma editora criada por Ricardo Carvalho e Ernesto Barros. Esse é um filme onde o debate político se destaca.

O tema de Noite e Neblina no Japão é a festa de um casamento duplo onde se reúnem antigos estudantes de uma academia que se conheciam há 10 anos. A estória se passa durante a festa de casamento. Como os noivos e seus colegas eram participantes da vida política, se entrelaça uma longa discussão sobre a ação política. E todo aquele entrançado que estava acontecendo naqueles anos 60 se faz presente, inclusive as traições e as contradições da Esquerda e também da Direita – e principalmente as muitas ilações entre os muitos membros, os amigos ou não.

Como acontece no filme de Nagisa O Homem que Deixou seu Testamento no Filme, o diretor deixa que os acontecimentos quase que se façam pelos personagens. Assim, os participantes é que comandam a ação e não o roteiro rígido. Então o espectador muitas vezes pode até pensar que a festa de casamento já foi até esquecida. É uma forma forte de narração cinematográfica sem se importar com ações não específicas.

Como foi seu quarto filme de longa-metragem, pode parecer que a simplicidade se explica por ser ainda de um iniciante do cinema. Mas o que muitos outros filmes de Nagisa Oshima indicam é que ele criou espontaneamente essa forma de narrar. E, embora como em muitos bons cineastas do Japão, ele tenha grande influência do cinema ocidental, não se submeteu à maneira hollywoodiana que era predominante já então, mas foi muito mais ligado ao toque europeu francês e italiano.

É interessante observar que filmes tão antigos como esse Noite e Neblina no Japão, feitos há mais de 50 anos, ainda possuam uma atualidade não só do ponto de vista político, mas também de uma forma de fazer bom cinema.

(Olinda, 5/6/2020)

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O TÚMULO DO SOL

Entre os muitos filmes de Nagisa Oshima que abordam a vida de setores da sociedade japonesa, esse Taiyo no Hakaba narra de modo dramático e também poético momentos dos habitantes de uma área da periferia na cidade de Osaka. Será possível comparar esse filme de Oshima com os dois filmes que Nelson Pereira dos Santos fez no Rio de Janeiro. Tanto pelo tema quanto pela forma sincera com que os dois cineastas olham a periferia, sem cobrar como juízes, mas simplesmente mostrando como aquelas pessoas são vítimas de uma punição para a qual foram destinadas sem saber por qual motivo.

Esses moradores da periferia das cidades modernas são como os personagens do romancista Franz Kafka, que estão na porta do castelo e não sabem por que não podem entrar, ou estão sendo processados sem ter a mínima possibilidade de absolvição. Nagisa Oshima faz um belo filme aprofundando a narrativa. Mesmo sem julgar, não teme explicitar as cenas violentas que se passam. E nessa favela ninguém tem um poder superior de um governo para salvá-los. É realmente cada um por si. Cada um tem que fazer a sua defesa com as pequenas ajudas que possam acontecer.

Nagisa contou na realização de O Túmulo do Sol com uma boa equipe técnica. Devemos destacar o músico Riichiro Manabe, criador de uma espécie de sinfonia que acompanha praticamente todo o roteiro do filme com momentos fundamentais, utilizando muitas vezes certos sons estranhos e outros sons até românticos – e com isso aumentando a expressão plástica das imagens do filme. E nesse sentido também é interessante lembrar o trabalho do fotógrafo Takashi Kawamata e do cenógrafo Koji Uno. Beleza, o título do filme que mesmo mostrando o inferno da comunidade lhe dá um toque poético, e o referencia a vários momentos de concretude poética.

(Olinda, 10/6/2020)

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