Elder Vieira: Continho de carnaval

Leia o conto de Elder Vieira escrito especialmente para o Prosa, Poesia e Arte

Misael é avesso a muvucas. Prefere, durante a estação de Momo, estar consigo. A vida tá cara, volve aos convites o misantropo – e vivir es demasiado peligroso, cita.

Vez ou outra, acede, no entanto, a instâncias dos amigos, que querem porque o querem ao menos numa farrinha, num desfile, numa mesa de bar, num alalaô que seja.

Este ano, como o foi em raros passados, vai a um bloco com a turma.

Com que roupa? Não é de fantasias – era só o que faltava, ele de palhaço, pirata ou politiqueiro de ocasião! Magro – o mais certo seria dizer seco, qual ponta de jabá –, pernalto, nariz de nós todos, cabelos negros escorridos que as mais de quatro décadas já grisalham, pele alva, resolve-se por cores neutras e panos leves, de algodão: calça de brim bege, camisa manga curta, de um azul esmaecido. Nos pés, sapatilhas: algodão cru e solado de borracha. Em bolsos internos, sempre que se atreve a aventuras desse tipo, leva somente a identidade, e alguns trocados.

Arrumado, penteado, perfumado – um sujeito asseado, esse Misael –, ganha a calçada do prédio em que mora e segue, rumo de sua gesta carnavalesca. Passa na lojinha do japa, vizinha à padaria onde, todos os dias, ceva-se de pingado e um francês desmiolado na graxa fria, e compra a primeira de muitas garrafas d’água.

Encontra todos na esquina combinada. Seguem juntos até a retaguarda do cordão. Enquanto os amigos já chegam pulando, incorporados de pronto no espírito da festa, ele vai como a passeio, feito turista, na marcha usual de todo o dia.

Em dado momento, vê-se cercado de colombinas, pierretes, ciganas e odaliscas, todas querendo balaticum. Desloca-se discretamente de banda, em demanda das margens do préstito. Eis senão quando…

Em decúbito dorsal, a um canto do passeio público, em meio a camadas e camadas de musselina azul, todos os dentes um só riso, ela se diverte com a própria súbita inexplicável queda. Acabara de escorregar e estabacar-se no chão. Sorte sua ser na calçada, e não no asfalto, onde o frege come solto ao som de um improvisado e duvidoso trio elétrico.

Misael, lesto, se aproxima e lhe oferece a mão. Ela a toma com firmeza e graça. Pele clara, olhos e cabelos escuros, rosto arredondado onde figuram óculos grandes, de aro redondo, ela agradece e se explica, rindo:

– E nem bebi… muito – e aponta o copo ao pé de si, a cerveja entornada escorrendo para o meio-fio.

Misael, meio besta, e sem atinar com a razão, pergunta:

– Professora?

– Sou – respondem, sem que ele se aperceba donde vem o som, os olhos dos quais não tira os seus –. De sociologia… E me chamo Ana Maria, se você não se importa de me devolver a mão…

Já totalmente besta, repara na boca e, num quase sussurro, riposta:

– Misael.

O bloco, pouca gente, vai longe. É senhor da rua agora um silêncio de tarde qualquer. Como se reatassem conversa interrompida de dias, Misael e Ana Maria falam de si e de tudo um pouco. Ela cita duas passagens de Las Venas Abiertas de America Latina e diz que seu objeto de estudo é o cubano José Martí.

Misael ouve trombetas. Presto, se vira em busca de arcanjos. Não os encontra, por suposto. Volta, então, para os olhos e os lábios de Ana Maria – e tudo mais, em verdade vos digo, são hosanas nas alturas.

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