Sem categoria

Erlon Paschoal: Ao Kafka, com carinho

Em julho de 1883 nascia em Praga um escritor que iria povoar para sempre a imaginação humana. Seu nome tornou-se proverbial tal a força de sua influência. Com seus sonhos, seus “pesadelos lacônicos” e suas observações irônicas sobre o comportamento humano

A Metamorfose foi escrita em vinte dias, entre 17 de novembro e 7 de dezembro de 1912, quando o autor tinha 29 anos, e foi publicada em 1915. A primeira leitura do texto, somente para os amigos, se deu na véspera do Natal de 1912, provocando intensas gargalhadas na pequena platéia. Dado relevante que evidencia o tratamento tragicômico da narrativa e o seu sutil poder de fazer rir. É a fábula de Gregor Samsa que um belo dia acorda metamorfoseado num monstruoso inseto. Uma espécie de contos de fada realista que a princípio pode causar no leitor uma leve sensação de incômodo, mas suscita também um sorriso irônico de cumplicidade em quem capta o humor subjacente na sucessão de acontecimentos triviais, perpassados pelo olhar mordaz e sutil do narrador. Trata-se sem dúvida de um humor estranho que manifesta uma certa descrença no mundo e, ao mesmo tempo, simboliza a situação típica do homem moderno frente às engrenagens sociais cada vez mais complexas, incompreensíveis e cruéis. A partir de 1917, Kafka começou a sofrer de tuberculose e até os 41 anos, quando faleceu, passou a maior parte de seu tempo internado em sanatórios em diversas parte da Europa.


 


 


Essa novela concisa e impressionante se presta naturalmente às mais variadas interpretações por sua característica de obra clássica e definitiva. Auxiliados por teorias psicanalíticas, alguns intérpretes vêem como matéria-prima de A Metamorfose o profundo sentimento de culpa do protagonista-autor frente ao pai, sendo por isso condenado a se arrastar pelos cantos escuros da casa dos pais. Outros consideram o personagem central um símbolo da existência medíocre e infame de um subalterno entregue à arbitrariedade de seus superiores. Muitos, contudo, identificam nessa obra o símbolo da revolta contra Deus, e o Seu posterior castigo. Kafka, aliás, pretendia editar A Metamorfose, junto com A Sentença e Na Colônia Penal num único volume intitulado Castigos. Os marxistas enfatizam na obra de Kafka sobretudo a questão da alienação do homem na sociedade capitalista moderna. Para os sensíveis à simbologia, seria interessante destacar, por exemplo, o papel relevante desempenhado pelo número 3 nessa novela. Ela se compõe de três partes; três portas levam ao quarto de Gregor; três empregadas; três inquilinos e ao final os três membros da família escrevem três cartas. Coincidência? Acaso? Arranjo intencional? Uma análise simbólica pode também levar a resultados surpreendentes: a Santíssima Trindade? A dialética hegeliana – tese, antítese e síntese? Uma alegoria da vida humana com a infância, a juventude e a velhice? Bem, numa grande obra de arte tudo é possível. Em função da riqueza de significados, ela possibilita infinitas interpretações. Mas de qualquer modo, é muito importante que o leitor se dirija ao livro sem avaliações pré-estabelecidas a fim de poder dialogar diretamente com a obra exercitando assim a sua própria sensibilidade e ampliando a sua visão de mundo. O fundamental é que nada se sobreponha ao prazer da leitura; afinal um dos principais ingredientes do estilo kafkiano é o humor sutil mesclado à ironia sarcástica e profundamente crítica.


 


 


O herói de A Metamorfose é filho de uma família pequeno-burguesa absolutamente comum: figuras medianas, medíocres que levam uma vida igualmente medíocre presas às mesquinharias ligadas aos bens materiais, e mergulhadas num cotidiano repetitivo, insosso e vazio. Pois bem, certo dia ele acorda e constata uma transformação radical em sua forma física. Um sonho? Uma alucinação? Resultado do trabalho excessivo? Não. O mais curioso é que se trata de uma metamorfose real, de um inseto literalmente real…assim têm início as peripécias de Samsa (palavra onomatopéica) no seio de sua família que apesar do acontecimento insólito e inesperado, mantem quase ininterrupto o cumprimento das obrigações diárias. É o príncipe que virou sapo. Uma narrativa realista numa moldura de conto de fadas. Nisso reside também o brilho, a magia, a graça do texto: uma ambigüidade vista e sentida pela família (e pelo leitor) como asquerosamente real e ao mesmo tempo dotada da aura de encanto dos contos de fada. Não falta nem mesmo o final feliz, o happy end, pois depois da morte do herói, que morreu de fome no meio da sujeira, a vida familiar volta ao “normal”, retomando o seu curso anterior e todos voltam a acreditar num futuro ainda melhor. Uma sátira à mediocridade da pequena burguesia? Uma parábola sobre a rejeição? Talvez seja o rir-se de si mesmo; o ver-se repentinamente flagrado no meio de uma seqüência interminável de atos sem sentido.


 


 


O inseto descrito no texto não corresponde zoologicamente a nenhum inseto real, mas isso não tem nenhuma importância, pois o que prevalece é a “situação” e suas conseqüências naquela família pequena, pacata e perfeita. Nela, o autor altera apenas um pressuposto básico, e todo o resto é apresentado com uma lógica bastante precisa e plausível. Essa atmosfera de irrealidade singular talvez leve o leitor a refletir sobre a própria existência e a confrontar-se com a falta de sentido da maioria de suas ações. E afinal, neste nosso mundo cruel, quem já não sentiu vontade de ficar deitado metamorfoseado num inseto para escapar de obrigações desagradáveis?


 


 


Reler as grandes obras da humanidade será sempre algo salutar e estimulante, sobretudo quando se trata de um escritor que influenciou tão incisivamente a história da literatura universal. Sempre existe, portanto, um bom pretexto para retomar o contato com a obra de Kafka e se deleitar com A Metamorfose, considerada por Jorge Luis Borges uma das narrativas mais perfeitas da literatura mundial.