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José Carlos Ruy: Com quantas Capitus se faz uma literatura? 

Leite Derramado, romance de Chico Buarque, lançado em 2009, faz dez anos. E o coloca entre os mestres da literatura, como agora, dez anos passados, o Prêmio Camões reconhece.

Por José Carlos Ruy*

Leite Derramado, Chico Buarque

A leitura do romance de Chico Buarque, Leite Derramado deixa claro que, na série de Capitus, sempre cabe mais uma – apresentando de forma nova os mesmos problemas antigos, enriquecida por múltiplas determinações, para usar a famosa expressão cunhada por Karl Marx.

Eulálio e sua sonhada Matilde, o casal desencontrado protagonista das memórias de um homem centenário recoloca, em outra circunstância, antagonismo semelhante que atormentou a consciência de Betinho, de Dom Casmurro (Machado de Assis, de 1899) e seu medo da infidelidade da mulher. Um registro mais recente é o caso de Nina e Valdo, de Crônica da Casa Assassinada (Lúcio Cardoso, de 1959). São tramas em que uma leitura superficial, e corriqueira, ressalta a traição feminina, sem perceber o que há de mais profundo nelas, nem o pavor masculino da traição da mulher. O problema, nesta variante de leitura, é masculino, e não feminino.

Mas isto é apenas o enredo para expor uma problemática mais complexa: o auge e a decadência de uma mesma oligarquia. Em Machado, ele é exposto com maestria em Dom Casmurro, parte da aguda análise daquela elite que compõe seus romances da maturidade. Em Lúcio Cardoso, o cenário da lancinante decadência é uma chácara num pequeno município da Serra da Mantiqueira, onde os Menezes tentam manter a mesma ultrapassada hierarquia social herdada dos séculos anteriores e que agora está completamente fora da realidade.

As memórias de Eulálio d’Assumpção – com o “d’” e o “p” nobilitantes no sobrenome – não tem esse sofrimento. É como se fosse o ponto de chegada da trajetória, ladeira abaixo, daquela mesma elite. Seu avô, um figurão do Império, dono de fazendas de cacau na Bahia e de café em São Paulo, estaria à vontade nos romances de Machado de Assis. Eulálio, já sem fortuna, relata – na verdade, delira – suas memórias no leito de um hospital público, às vésperas de completar cem anos. Desfila preconceitos de classe da mesma forma que essas famílias decadentes, que fazem o teatro das grandezas sociais das gerações passadas, e agora perdidas.

Não há registro de dor nas memórias de Eulálio, mas de alienação em relação à própria decadência. Alienação nítida na incapacidade de ver sua situação atual com realismo, refugiando-se num passado mítico. A memória congela o tempo, e Eulálio vê seu neto?, bisneto? tataraneto?, sem saber em que lugar genealógico colocar aquele rapaz que traz, no nome, o sinal da mudança e da aristocracia perdida: Eulálio d’Assumpção Palumba, onde “Palumba” indica a mistura com os plebeíssimos imigrantes que vieram para o Brasil. Rapaz que ele descreve com as tintas e preconceitos de classe com que seu pai o descrevia quando jovem, nas primeiras décadas do século 20.

O texto de Chico Buarque chega a ser cruel em relação à autoimagem da oligarquia. Um exemplo é a apresentação cheia de ironia da pretensa ausência de preconceito racial. Sua existência é transparente na referência aos pares Eulálios/Balbinos que se sucedem em três gerações da família d’Assumpção, onde evidentemente os balbinos (escravo, o primeiro; ex-escravos, seus descendentes) ocupam as posições subalternas. Esse preconceito mal disfarçado – cuja negação é um mecanismo para sua reafirmação e permanência – perpassa a relação de Matilde, “a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa do meu pai”, com a sogra, com as freiras do colégio aristocrático onde teria estudado, com os amigos franceses de Eulálio. Verbalizando sem julgar a fantasiosa autoimagem daqueles que se colocam acima dos demais, a descrição que faz deles é, no entanto, a negação explícita e crua de palavras que não correspondem aos fatos reais, mas são usadas para amenizá-los ou ocultá-los.

O realismo é visível também no cuidado com que transforma em arte a errática memória de um idoso, que é fragmentária, com repetições sucessivas nas quais, como num quebra-cabeças, aos poucos os cacos de lembranças formam um conjunto coerente. Aqui se revela o domínio da escrita que transforma o processo mental observado cuidadosamente pelo autor em matéria-prima para sua literatura. “A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas”, diz Chico Buarque pela fala de Eulálio.

No futuro, talvez Chico Buarque de Holanda venha a ser reconhecido mais como escritor do que como o fantástico músico que é. Os poemas de suas canções já bastariam para colocá-lo entre os mestres da língua portuguesa. Com Leite Derramado, ele se equipara aos grandes prosadores do idioma, não só no bordado cuidadoso das palavras e das frases, mas sobretudo na arquitetura da obra.

* José Carlos Ruy, jornalista, é colaborador do Prosa, Poesia e Arte