José Geraldo Couto: E o cinema brasileiro dribla a pandemia…

Cinema contra-ataca mostrando sua potência criativa e sua diversidade

Duas boas novas chegam praticamente ao mesmo tempo: o lançamento do canal de streaming Itaú Play e a abertura do Belas Artes Drive-in no Memorial da América Latina, em São Paulo. O primeiro oferece a partir de 19 de junho um festival de pré-estreias em que se destacam os melhores filmes brasileiros da safra recente. O segundo, inaugurado ontem (17), reprisa títulos de grande impacto, entremeados com alguns inéditos, em sua maioria estrangeiros.

Entre as pré-estreias do Itaú Play está o novo longa-metragem de Claudio Assis, Piedade, premiado no festival de Brasília do ano passado e programado para esta sexta-feira e os três dias seguintes. Só durante a sexta o acesso será gratuito. É talvez o filme mais maduro e ambicioso do diretor. Ambientado na fictícia Piedade, uma antiga comunidade de pescadores e surfistas transtornada pela chegada de um complexo petrolífero, tem sua narrativa centrada na família de uma matriarca (Fernanda Montenegro) proprietária de um bar e restaurante à beira-mar.

Estão presentes, com um grau mais elevado de elaboração e sutileza, algumas das marcas registradas do cineasta: a denúncia da opressão social, uma visão amarga das relações familiares, o sexo transgressor como força libertária. Voltaremos oportunamente a este e a outros filmes importantes da safra.

Rio Grande, Minas, Bahia, Ceará

Em contraste com a acidez habitual de Claudio Assis, Aos Olhos de Ernesto, de Ana Luiza Azevedo, é a pungente crônica do cotidiano de um velho uruguaio solitário (Jorge Bolani), cuja vida, num predinho de Porto Alegre, sofre uma inesperada reviravolta com a entrada em cena de uma jovem destrambelhada (Gabriela Poester). A delicadeza do olhar e a precisão narrativa, qualidades habituais da diretora, atingem aqui o seu momento mais elevado. É um dos títulos obrigatórios da programação.

Da Bahia vem o igualmente delicado e denso Guerra de Algodão, da dupla Marilia Hughes e Claudio Marques. É, de certo modo, um “romance de formação”, em que uma garota de 14 anos (Dora Goritzki) volta a Salvador, depois de ter vivido a infância com a mãe na Alemanha, e passa a morar com a avó (Thaia Perez), uma atriz aposentada que causou furor na juventude por sua postura transgressora. Conflito de gerações, choque cultural, descoberta do amor, tudo misturado num filme forte e encantador.

O totalmente inédito Dora e Gabriel é a obra mais surpreendente e radical do paulista Ugo Giorgetti, conhecido por suas incisivas crônicas urbanas. Desta vez, tudo se passa no interior de um porta-malas de carro, onde um homem (Ary França) e uma mulher (Natalia Gonsales) são trancafiados por assaltantes ou traficantes. É admirável o modo como essa situação insólita passa imperceptivelmente do registro realista para o metafísico (à falta de palavra melhor).

Do extraordinário A Febre, de Maya Da-Rin, e do engenhoso Três Verões, de Sandra Kogut, já tratei aqui em outras ocasiões. Merecem destaque também o mineiro Querência, de Helvécio Marins, que faz uma releitura do universo sertanejo por meio da trajetória de um vaqueiro (Marcelo Di Souza) convertido em locutor de rodeios, e o drama cearense Pacarrete, de Allan Deberton, em que a fantástica Marcelia Cartaxo encarna uma ex-bailarina que vive de lembranças e recria com sua suntuosa fantasia o modesto vilarejo onde mora.

Drive-in de arte

Há mais de um mês falamos aqui sobre o retorno dos cines drive-in. De lá para cá, cinemas desse tipo pipocaram em vários pontos do país, geralmente em estacionamentos de shoppings, exibindo globochanchadas e blockbusters dublados.

A diferença do Belas Artes Drive-in, inaugurado esta semana no Memorial da América Latina, em São Paulo, é a programação, composta apenas de filmes “autorais”, ou quase. Na programação, vários títulos de Kubrick, Tarantino, Almodóvar, Oshima, etc.

Entre os inéditos estão a “versão final” de Apocalypse Now; o francês Os Melhores Anos de uma Vida, revisita de Claude Lelouch a seu Um Homem, Uma Mulher (1966), meio século depois; o palestino-israelense Tel Aviv em Chamas, de Sameh Zoabi; e o brasileiro Partida, do ator Caco Ciocler.

Este último, um misto de documentário e ficção, acompanha a viagem de ônibus de uma pequena trupe brasileira ao Uruguai, onde a atriz Georgette Fadel, indignada com a vitória de Jair Bolsonaro na eleição de 2018, pretende se encontrar com Pepe Mujica e iniciar sua própria campanha para a presidência da República do Brasil. Soa maluco – e é mesmo.

Mas as relações humanas que se estabelecem ao logo da viagem, entremeadas às discussões políticas e filosóficas, trazem novas luzes ao momento de perplexidade que estamos vivendo. E o breve encontro noturno com Mujica, ao lado de seu fusquinha velho, numa estrada de terra, tem o encanto de uma pequena revelação.

Em suma: sufocado pela retenção de verbas, pelo desmonte das políticas de fomento, pelos cortes de patrocínio e pela atitude francamente hostil do atual governo, o cinema brasileiro dribla a pandemia e contra-ataca mostrando sua potência criativa e sua diversidade.

Publicado orginalmente no Blog do Cinema (Outras Palavras)

Entre estreias e inéditos, no canal Itaú Play e no Belas Artes Drive-in, está o premiado Piedade, dum Claudio Assis mais sutil e maduro, mas com suas marcas registradas

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