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José Varella: Acerca de um plano Mandela e do FSM em Belém

O Fórum Social Mundial 2009, em Belém do Pará (Brasil), abre espaço aos amigos da Amazônia, notadamente das gentes das ilhas do Marajó no maior rio do mundo; para lançar uma garrafa de náufrago ao rio-mar em socorro às populações tradicionais da Terr

A gente não quer só comida, bebida e morada. Um prato de lentilhas pra matar a fome… Nós temos renome desde os começos do mundo: a gente quer a ''Terra sem males'' refeita com Ócio como negócio para todos. Reinventar a roda do Futuro sem renegar o curso do Passado. Reconstruir nações antigas, mais unidas do que a ONU, para felicidade humana em geral e conservação global do planeta. Pode ser, ou está difícil?…


 


Mensagem ribeirinha da primeira década do milênio


 



Talvez, a metáfora dessa garrafa de náufrago, entregue ao deusdará da maré pela fé da Mucura; desmentirá, definitivamente, a teoria do “espaço vazio” e o racismo congênito dos herdeiros de Buffon. Denunciará, por certo, a síndrome de subdesenvolvimento adquirido pela transplantação da Míngua ocidental. Despertará solidariedade e amparo às populações tradicionais das regiões mais pobres afetadas pela Colonização. Consolidará a fratura do “dedo da História”: aquela memória ultrajada que o concreto monumento de Oscar Niemeyer mostra, à entrada da Cidade do Pará; em tributo ao luto dos mortos da Cabanagem, à beira do antigo caminho dos índios do Maranhão e agora rodovia BR 316. Quem sabe radiografar e ler o espaço pós-industrial em gestação? Antigo exercício de profetas da idade da pedra…


 


O dedo histórico decepado e deixado ao chão queimado e sangrento da guerra de conquista do rio das Amazonas, agora feito em carvão da Floresta devastada. Índex que acusa o ínfimo IDH dos povos tradicionais. Agora o dito cujo aponta ao retardo das metas do Milênio, que é uma pena… Dedo cabano ao chão caído, que mexe fundo feridas da memória para que a história não se repita nunca mais. Os males da escravidão, exploração desenfreada de recursos naturais, acumulação primitiva, genocídios, extinção de espécies da flora e da fauna, desaparecimento de línguas e culturas nativas, aquecimento global. A coisa está pela hora da morte! Mas, não há segredo: Deus é brasileiro e o espírito Jurupari fala e ri pela boca dos pajés…


 


Na Amazônia, o Brasil indígena, quilombola, caboco vê romper o dia. Acontecer uma primeira manhã! Não é hora, então, de dormir sobre louros da inclusão sócio-econômica, mas sim acelerar o crescimento da participação popular na República Federativa. Assumir, com vontade de construir uma vigorosa econômia solidária, liderança da rede mundial de áreas protegidas em cooperação com  populações tradicionais para o desenvolvimento humano das regiões.



 


Revolução pós-colonial da resistência cultural dos povos


 



Do FSM 2009 poderá sair uma semente capaz de ressuscitar, por diversas vias; o “Quinto Império” luso-tropicalista refeito da sinergia com o mito neotropical da “Terra sem Mal”. Mestiçado e convertido das águas amazônicas, batizado pelas chuvas equatoriais, tal qual o dilúvio regenerador.


 



O gigante adormecido despertará na América do Sol, campeador da proteção da biosfera planetária e defensor perpétuo das populações tradicionais da Terra, conforme mandado ancestral do Bom Selvagem tupinambá. Se nos calar neste  momento fenecerá, talvez para sempre, esta semente que vem antigamente do fundo do rio do tempo pelo inconsciente coletivo.


 



Nasceu a Cultura Marajoara: a mais antiga da região, no ano 500 enquanto o império de Roma declinava. Custou caro à nossa gente o ingresso ao clube da Civilização ocidental-cristã. É natural, portanto, que em nome da milenar cultura amazônica devastada pela Colonização se refresque a memória do mundo sobre a sonegada dívida mundial da acumulação primitiva dos Descobrimentos Maritimos.



 


Economia da salvação do planeta
 


 


Quem há de saldar a dívida original da Civilização? Quem deve o que e a quem? Pergunta difícil de se responder em plano local. Porém, fácil na contabilidade geral das transações Norte-Sul, visto o grande apartheid das Antípodas, modernamente os hemisférios setentrional e meridional da Terra. Se os impérios coloniais se finaram e a fortuna deles segue o rumo do Capital pelos caminhos do mundo, é claro que a velha História não terá fim; enquanto não se pagar até o último centavo a dívida original gerada, supostamente, com a conversão do primitivo pecado dos exilados do Jardim do Éden. Outra vez aqui, o novo Éden amazônico ou o “Inferno Verde” é cenário adequado para se tratar destas coisas.


 


 



Rico em coincidências históricas, leituras políticas, interpretações socioambientais e significados antropológicos, o FSM 2009 vai além da curiosidade mediática e das aparências externas que lhe queiram dar! Ou, então, lamentavelmente será ele um evento de pouca monta e memória curta, se o povo convidado apenas entrar com a cara para decoração da diversidade étnica e cultural do ambiente necessário ao brilho de astros e estrelas da salvação do mundo.



Pra não dizer que só se falou de flores…


 


O tempo e o lugar do acontecimento merece reflexão extra, pré e pós-evento. É preciso ver o peso e a cara da gente espelhada no retrato do vasto mundo… O fórum alternativo no “rio das amazonas” coincide, por acaso, com os 250 anos da expulsão da Companhia de Jesus do Grão-Pará (cavalaria espiritual e material do catolicismo, cerne da ordem de Cristo sucessora dos Templários): a Amazônia foi, entre as duas metades dos seculos XVII e XVIII; o maior e mais interessante campus da sociedade dos “companheiros do mestre Ignácio”. Isto é uma realidade, para o bem e o mal, pouco considerada pelos especialistas de temas amazônicos.



 


Não importa gostar ou não gostar de padres, pastores e pajés: não há como escapar do  labirinto amazônico tentando contornar a complexidade cultural que mora na alma de 25 milhões de habitantes desta região de religiosidade (ou seja lá o que isto significa) à flor da pele. É preciso ler o comunista agnóstico Dalcídio Jurandir além do romance e o jesuíta Giovanni Gallo como repórter do fim do mundo; para mergulhar profundamente à realidade ribeirinha e achar a explicação do mito da “primeira noite do mundo” ou talvez a chave dos profetas em versão caboca. Sejam nas cartas e sermãos de Vieira durante sua passagem amazônica (1652-1661), ou a conquista da Ilha Grande de Joanes (Marajó, de 1659 a 1759) até o Diretório dos Índios, a expulsão e perseguição de estado aos jesuítas e a doação de fazendas das missões aos homens-bons Contemplados…
 


 


Desse terreno alagado se surdiu o choque cultural traumático das Luzes (tal como Alejo Carpentier romanceou no Caribe) com o obscuro neolítico amazônico misturado a ferro e fogo na escolástica tardia do teatro equinocial do Novo Mundo, cujos rescaldos vão desaguar no apartheid do ciclo romanesco Extremo-Norte do marajoara Dalcídio Jurandir (1909-1979), a fazer o centenário de seu nascimento em 2009.


 



O que tudo isto implica na maré dos tempos, nestes dias confusos da região com referência ao país gigante da América do Sul e as suas relações externas? Acontecimento-chave que se explica, na mesma data, pelos 350 anos da carta “As Esperanças de Porugal” (manifesto do Quinto Império, pelo padre Antônio Vieira) e o trato do Payaçu com os sete caciques Nheengaíbas; na Paz do Marajó (1659).


 



Malgrado o formidável desinteresse acadêmico a respeito do incrível fato retratado em letras barrocas sobre a paisagem surreal das Ilhas; restaria sem notícia convincente a gloriosa expedição conquistadora do capitão Pedro Teixeira, movido a 1200 remos e arcos tupinambás, de Belém do Pará a Quito (Equador), de 1637 a 1639; se não acudisse à aventura a conseqüência prática da pacificação dos silvícolas marajoaras atravessados na boca do rio grande de Orellana, no impedimento – por acaso –  da revogação real da “linha” de Tordesilhas. Onde o historiador colonial claudica, o geógrafo pós-moderno pode abrir os olhos do viajante da História do Futuro…


 



O FSM de 2009 na Amazônia – “última fronteira da Terra” – acresce de importância, sobretudo, depois que Sua Santidade o Papa João Paulo 2º houve por bem pedir o perdão dos Índios e Negros em nome da Igreja Católica Apostólica Romana. Quase dez anos depois das comemorações dos 500 anos da viagem de Colombo, temos oportunidade para dar concretude a sermões e discursos em favor dos direitos humanos dos povos indígenas desde a célebre polêmica entre Las Casas e Sepúlveda.


 


A pele da Cobragrande ou tecelagem do mito e história


 



A fim de evidenciar a conexão entre a iniciativa marajoara e o FSM de 2009, cumpre reter dentre outros os seguintes fatos:


 


* corrida colonial com a aventura de Sagres intensificada por Cristóvão Colombo (1492), levando ao Mar-Oceano as rivalidades entre os reinos da Espanha e Portugal, malmente equilibradas no “tratado de Tordesilhas” (1494), famoso “testamento de Adão” sancionado pelo papa Alexandre VI, incitando monarcas da França, Holanda e Inglaterra a competir em busca de colônias;


 


* seis anos após Tordesilhas, em 1500, o piloto de Colombo, Vicente Pinzón descobriu a foz do Amazonas onde capturou os primeiros “negros da terra” (escravos indígenas) da América do Sul, na ilha do Marajó e um animal mostrosum (mucura): decorridos 1000 anos que o povo das ilhas do estuário amazônico havia inventado sua própria civilização;


 



* começada a colonização do Brasil e do Peru, migração de 14 mil tupinambás durante 12 anos percorrendo o rio Amazonas cerca de 1538, de Pernambuco pelo sertão até o rio Tocantins e baixo-Amazons, para chegar ao alto-Solimões onde os índios cairam escravos dos espanhóis: presumivelmente,  busca da “terra sem mal” colocando em confronto nações indígenas do delta amazônico;


 



* descida de Orellana, em 1542, através de Quito (Equador) e invenção da lenda das mulheres guerreiras (amazonas) com o infeliz retorno e morte do capitão espanhol (1544) para colonizar “Nova Andaluzia”;


 


* feitorias holandesas, entre 1599 a 1600; com índios do Marajó e Amapá colocando em perigo as minas no Peru, induzindo a dependência das aldeias a manufaturados europeus em troca de “gados do rio” e “drogas do sertão”,  causa de guerra e acirramento de rivalidades entre nações indígenas a forçar  ocupação de territórios, até então, deixados à margem;


 



* fundação do forte do Presépio (Belém do Grão-Pará, 1616) durante trégua entre portugueses e franceses na colônia de La Ravardière (Maranhão), com acordo dos tupinambás;


 


* aliciamento de colonos nos Açores (1618) por Simão Estácio da Silveira para povoar o Maranhão, escravização dos tupinambás e revolta dos mesmos (1619) com matança de uma centena de brancos e represália destes mediante massacre e cativeiro de milhares de índios;


 


* malgrado, o canibalismo e religião da vingança professada pelos tupinambás, em 1623 este ofendido e traído povo não hesitou a somar seus arcos e remos às armas e navios lusos para expulsar os estrangeiros acamaradados dos Nheengaíbas (aruaques), inimigos hereditários dos tupis;


 



* graças a tais movimentos bélicos e acordos de paz, ruptura da “linha” de Tordesilhas, meridiano a 370 léguas a oeste de Cabo Verde: passaria, supostamente, sobre Belém do Pará tangente à costa leste da ilha do Marajó;  entrada do capitão Pedro Teixeira até a cidade de Quito (1637-1639);


 



* 1659, o Padre Antônio Vieira conseguiu pacificar os índios do Marajó depois de uma tentiva de paz frustrada, levada pelo padre João de Souto Maior, e três assaltos armados repelidos pelos ilhanos que impediam a passagem das canoas de “drogas do sertão” através da Ilhas: com a paz do rio dos Mapuá (Breves) ficou revogado, de fato, o tratado de Tordesilhas;


 



* dobrada pacificamente a resistência dos índios marajoaras, a penetração do vale amazônico pelos portugueses foi levada até aos confins, com que a diplomacia de Alexandre de Gusmão pôde firmar o uti possidetis real reconhecido no tratado de Madrí de 1750;


 



* os missionários, que durante um século tinham possibilitado a transformação de selvagens em índio manso a serviço dos monarcas católicos; iriam ser substituídos por ordem de Pombal na direção das aldeias por cabos e colonos sem preparo (origem do município amazônico), 1757, o Diretório dos Índios;


 



* em 1759, envolvidos em profundo conflito com o estado imperial iluminista, os Jesuítas foram expulsos do Grão-Pará e todo reino de Portugal: os índios acostumados ao jugo brando dos padres abandonaram as aldeias para voltar aos matos junto a mocambos (quilombos) ou parentes isolados na costa do Amapá e rio Oiapoque;


 



* neste contexto, no século XVIII, populações tradicionais ribeirinhas lutavam para manter seus costumes, enquanto o mundo civilizado assistia a profundas mudanças com a independência dos Estados Unidos da América (1776), revolução francesa (1789), revolução anti-escravagista do Haiti (1791);


 



O Contestado do Amapá (1713 – 1900) com as ilhas do Marajó formavam bolsão de isolamento entre as colônias amazõnicas de Portugal e da França. Na Europa, a luta entre França e Inglaterra forçou a transferência da corte de Portugal de Lisboa para o Rio de Janeiro e agitou as duas colônias com a invasão de Caiena, em 1809, com tropas do Pará que voltaram em 1817, “contaminadas” pela Revolução Francesa e Haitiana agitando os escravos na margem direita do rio Amazonas;


 



Desde então,  a revolução liberal do Porto, 1820, acendeu o estopim na Amazônia, de modo que em 1823 concluiu-se a dependência portuguesa para passar ao Império do Brasil com a adesão de Muaná (28 de Maio), o cambalacho de 15 de agosto e a “tragédia do brigue Palhaço” com assassinato de mais de duzentos nacionalistas paraenses: rota batida para a Cabanagem de 1835-1840;
estuário 2009


 



Neste bosquejo chegamos à fundação do Museu do Marajó por Giovanni Gallo; e à premiação da obra literária de Dalcídio Jurandir pela Academia Brasileira de Letras, ambos no mesmo ano de 1972. Por acaso, estes fatos convergem como dois grandes cursos que vêm desaguar no estuário dos “sete mil rios” da Amazõnia (Dalcídio Jurandir).


 



Assim, em 1999 a Igreja Católica através de seus dois bispos na Ilha do Marajó ao ouvir o clamor da gente ribeirinha editaram documento de denúcia do mísero IDH das ilhas; para chamar atenção da sociedade e das autoridades constituídas. Decorrido mais algum tempo, o poder público, em resposta ao movimento popular, neste ano de 2008 – quarto centenário de nascimento do Payaçu Antônio Vieira – instalou o programa Território da Cidadania, acompanhado do Plano de Desenvolvimento Terriroiral do Arquipélago do Marajó. Em 2009, será a vez e a hora do FSM: oportunidade para recolher a garrafa de náufrago e divulgar a mensagem contida nela desde sempre.


 



Tudo é mais difícil quando os donos do mundo não se interessam à conversa de cabocos. Para um plano pós-colonial (ao contrário do que foi o plano Marshall), dirão logo que faltam fundos. Sabe-se, todavia, que não é verdade: para desconcentrar a brutal acumulação de renda mundial seria um bom começo reforçar o programa O Homem e a Biosfera, da Unesco, por exemplo. Recolher taxa sobre o comércio internacionla de matérias-primas a fim de melhorar a qualidade de vida das populações tradicionais e proteger o meio ambiente. Uma vez que esta gente muito raramente usa automóvel, elevadores, aparelhos de ar-condicionado e outros benefícios industriais seria justo lhe compensar pela abstinência do consumo industrial, de maneira semelhante como já se faz com aqueles que recolhem carbono e que poluem a atmosfera do planeta.


 



Seria triste se o FSM, dentre muita expectativa, depois de abrir espaço na praça, partir da Amazônia sem evoluir o discurso com que chegou. Fica aqui a sugestão que não será insiginificante nem romântica, se houver consideração à lição do poeta a quem tudo vale a pena se a alma não é pequena.



Belém, 18/03/2008
www.unilivre.org
www.museudomarajo.com.br