De um bar em Paris à redemocratização do Brasil, Alceu Valença transformou um engano e suas memórias em um dos maiores sucessos da música brasileira.
Publicado 15/03/2025 10:45 | Editado 18/03/2025 11:53
Neste sábado (15), o Brasil comemora 40 anos de redemocratização, marcando o fim da ditadura militar e a retomada da democracia. Durante os 21 anos de regime, artistas, intelectuais e músicos encontraram na arte uma forma de resistência. Entre eles, Alceu Valença, cuja trajetória entre o Brasil e a França influenciou profundamente sua obra. Um de seus maiores sucessos, La Belle de Jour, lançada em 1993 no álbum Sete Desejos, tem suas raízes fincadas nesse contexto histórico e cultural.
Alceu Valença viveu um período de afastamento do Brasil durante os anos duros do regime militar. Em 1979, ao lado de artistas como Raul Seixas e Jards Macalé, ele se estabeleceu na França numa espécie de exílio cultural, como uma forma de resistência à censura e à repressão.
“Eu saí do Brasil também porque era a época da ditadura militar – vi muitas coisas que aconteceram aqui com amigos, tinha muita gente presa… Pô, era uma maneira de, pelo menos, respirar o ar da democracia na França. Mas eu não estava exilado, não”, afirma o cantor. “Eu me apeguei muito ao violão também. Paulinho Rafael, que toca comigo há uma porrada de tempo, foi e fizemos uma turnê de voz e violão juntos”, lembra. Dessa parceria na Europa nasceu o disco Saudade de Pernambuco.
Seu retorno ao Brasil aconteceu em 1980, mas ele seguiu viajando para a França nos anos seguintes, onde participou do festival “Couleur de Brésil” em 1986.
E foi justamente nesse retorno à França, em 1986, que surgiu a inspiração para La Belle de Jour. Após se apresentar no festival, Alceu foi ao Bar dos Filósofos, em Paris, acompanhado de amigos e de uma então namorada. Segundo ele, naquela ocasião, “tinha um pessoal bebendo, brincando, conversando com aquelas pessoas que eu conheci, filosofando, e de repente, uma moça começou a olhar para mim. Bonita demais! Aí quando eu fui ao banheiro, ela perguntou como era o meu nome e eu respondi: “Je suis un poète” (eu sou um poeta). Ela sorriu e pediu que eu fizesse uma poesia para ela”, relembra Alceu.
Sem saber o que fazer, Valença fingiu rabiscar um guardanapo e entregou a ela dizendo: “C’est le poème blanc” (É o poema branco). A resposta inusitada arrancou risadas da até então mulher misteriosa.
“‘Super! Merveilleux‘, ela dizia, maravilhada, e eu não sabia quem era. Voltei pra mesa e o Wellington Lima [seu empresário] me olhou e disse: ‘Rapaz, perdeu a maior gata… Simplesmente Jacqueline Bisset’”, conta o músico.
No dia seguinte, ainda sob os efeitos de uma ressaca brava, Alceu confundiu Bisset com Catherine Deneuve, protagonista do filme A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1967), de Luis Buñuel. Inspirado pelo episódio, compôs La Belle de Jour, transportando a musa do cinema parisiense à praia de Boa Viagem, no Recife.
“Ficou na minha cabeça, anos e anos e anos aquilo”, relembra. “E um dia, num surto criativo, eu peguei e juntei tudo. Juntei a música de Boa Viagem, que foi para Paris, justamente com a outra”.
Contudo, Alceu inicialmente acreditava que o filme era estrelado por Jacqueline Bisset e só descobriu o equívoco anos depois, durante o programa do Jô Soares.
“Ele perguntou quem tinha inspirado essa música e eu falei que tinha sido Catherine Deneuve. Uma semana depois encontro o Welingon e ele disse que eu estava mentindo demais. Eu digo: ‘eu menti?’ e ele fez ‘mentiu’. E eu perguntei ‘como?’ e ele disse ‘quem estava ali, você falou que foi Catherine Deneuve’ e eu disse ‘e não foi, você não viu?!’ . Aí ele em negação disse: ‘era Jaqueline Bisset'”, relembra entre risos.
O legado de La Belle de Jour
Longe de ser apenas uma história de amor ou uma anedota sobre um engano, La Belle de Jour consolidou-se como um dos maiores sucessos da MPB. Seu impacto vai além da música: reflete a trajetória de um artista que viveu a repressão e a redemocratização do Brasil, expressando sua liberdade através da arte. “Era eu, Raul Seixas, Macalé, e outros, nomeados como ‘malditos’. Mas acho que na verdade eram benditos, porque artista tem que ter um pouquinho de loucura. Um artista careta é um bobo, não passa verdade”, declara Alceu.
Assim como a história política do Brasil, La Belle de Jour representa um reencontro com a liberdade. É uma canção que nasceu entre o exílio, o amor e a arte, tornando-se atemporal para todas as gerações.
__
Referências:
Alceu Valença: “Do nada, a internet descobriu uma música dos anos setenta e foi esse pipoco! El País, 06/05/2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/cultura/2021-05-07/alceu-valenca-do-nada-a-internet-descobriu-uma-musica-dos-anos-70-e-foi-esse-pipoco.html>
“O significado por trás de La Belle De Jour, de Alceu Valença”. LetrasMus, 17/05/2022. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/blog/historia-la-belle-de-jour/>
Sem Censura | Alceu Valença explica a composição de “La Belle de Jour”. TV Brasil, 12/04/2024. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=FkjT-xipyqA>