Nosso mundo não está morto

Joel Wendland-Liu faz resenha crítica do livro “A mais longa duração da juventude”, romance-memória de Urariano Mota sobre a resistência contra o fascismo brasileiro

Capa do livro “A mais longa duração da juventude”, de Urariano Mota Foto: Reprodução

A ilusão de um presente constante esconde como a maioria de nossas vidas é vivenciada através da memória. A iminência física do presente – a sensação de concretude, odores, sons, vivacidade da visão ou sabores da objetividade do agora imediato – desliza continuamente para a memória. Ainda assim, a memória pode assombrar o presente, tornando-o doloroso com uma sensação avassaladora de perda, desespero pelo fracasso ou falta de metas, ou talvez com as emoções de nostalgia pela perda de entes queridos, de um café favorito ou saudade de um bairro antigo que abrigou os marcos da juventude. A luta para resistir ao movimento percebido do tempo por meio da criação de uma narrativa que restaura memórias de companheiros humanos e a vitalidade de ontem no presente é o tema do romance semiautobiográfico de Urariano Mota, “A mais longa duração da juventude” (Never-Ending Youth).

Baseado em pessoas reais ou compostos de pessoas reais, o trabalho de Mota oferece instantâneos do movimento radical da juventude brasileira na década de 1970. O autor narra a luta antifascista ds estudantes no Recife, em Pernambuco, durante a ditadura que, com o apoio dos Estados Unidos, derrubou o governo democraticamente eleito e passou a ser comandado por generais por duas décadas. Como parte da história sobre esses poucos anos na vida de um punhado de jovens, o romance de Mota também invoca um contexto global mais amplo, enraizado no tráfico europeu de escravos, colonialismo, raça e patriarcado. O livro explora temas de supremacia masculina e racismo e as mudanças significativas em como as pessoas de esquerda entendiam esses sistemas duradouros em sua análise da luta de classes. O livro de Mota resgata as personalidades, as ações e idiossincrasias dos homens e mulheres que lutaram contra a ditadura repressiva.

Eles se inspiraram nos movimentos anti-imperialistas em andamento liderados por Fidel Castro, Che Guevara, Ho Chi Minh e Mao Tsé-Tung. A música vibrante, a poesia e a ficção que compõem a arte e a cultura brasileira serviram de referência constante para suas emoções, ideias e relação com sua história e futuro. Manuel Bandeira, Jorge Amado, Solano Trindade, Alfredo da Rocha Filho (Pixinguinha), Vinícius de Moraes e Paulo Freire são os filósofos, ativistas, cantores e escritores que moldam a atmosfera, as ideias e as palavras desse mundo radical. Além dessas fronteiras, Dom Quixote, as obras de Marcel Proust e Gabriel García Márquez, a poesia de Goethe e Lorca, a dialética de Marx e o pensamento de Mao Tsé-Tung, até mesmo as interpretações vocais de Ella Fitzgerald, habitam as deliberações e debates de nossos heróis e heroínas .

De fato, a narrativa de Mota constrói pontes imaginativas para o passado histórico por meio de conexões culturais, o passado vivido por meio de memórias de luta política e o presente e o futuro. Esse senso filosófico de coletividade transcendente, de uma identidade com outros seres humanos e lutadores pela libertação, com os criadores da vida, das ideias e do próprio mundo, se eleva sobre o presente do indivíduo alienado sob o capitalismo repressivo. A morte e o funeral de seu grande amigo Luiz do Carmo, a quem o narrador-protagonista descreve como “meu Sancho Pança”, motiva a escrita do livro. Urariano Mota tenta reconstruir uma narrativa das memórias da sua juventude, dos seus amigos, camaradas próximos e companheiros de viagem.

Júlio conheceu Luiz do Carmo quando a organização estudantil o encarregou de esconder Luiz. Este último havia sido rotulado de terrorista pelo regime por distribuir literatura pró-democracia. Júlio está entusiasmado por poder ajudar o movimento, mas completamente constrangido e envergonhado da sua pobreza. Sua casa é um pequeno cubículo superaquecido de um cômodo no topo de uma pensão. Ele não tem dinheiro suficiente para alimentar os dois adequadamente e conta com a generosa empregada da pensão, que entende sua situação e lhe dá maiores porções.

Seu desejo de contar uma história sobre a riqueza da vida de Luiz do Carmo e seu papel na luta contra a ditadura evoca memórias de outros: Zacarelli, Selene, Gordo, Célio, Lucas, Tonhão, Zé Batráquio, Joana, Antônio, Nelinha e Vargas. O romance é composto de várias dezenas de episódios curtos com caracterizações desenvolvidas de cada um personagem. Esses jovens têm imperfeições, são obcecados por sexo, álcool e música, imperfeitos em sua política, exibindo tendências anarquistas, machismo ou orientações reformistas. Ainda assim, de maneira perfeita e indelével, eles fizeram do período principal da cronologia do romance (1969-1973) o que era a ditadura. Júlio, o narrador-protagonista, diz que este tempo e lugar não eram utópicos ou uma época para a qual ele gostaria de voltar. Não foi o momento mais bonito. Ele foi marcado pelo terrorismo e tortura do regime. Mas era nosso, e nós, juntos, o tornamos bom.

Acima de tudo, continua vivo: “nosso mundo não está morto”. Enquanto os fascistas criam uma falsa imagem do mundo que reflete seus valores, brutalidade e sua cultura de morte e ódio, a luta revolucionária pela democracia e pelo socialismo luta pela vida e pelo futuro. Júlio observa que, apesar dos limites impostos pela ditadura contra a liberdade, os estudantes e os lutadores eram “os agentes do seu tempo”. A decisão de lutar contra a opressão e o fascismo foi um ingrediente essencial que fez esse tempo valer a pena. Como um cronista do momento e da cultura da luta, Júlio se encarrega da criação de um texto, de uma narrativa que fará a ponte entre a memória e o presente emergente e dinâmico. Um texto é algo, ele acredita, que sobreviverá ao momento, que recuperará o passado que sobrevive apenas como memória.

Ao deixar o funeral de Luiz do Carmo, Júlio contempla a dor sentida pelas lembranças de seus entes queridos, seus irmãos de luta e seus companheiros perdidos tanto pela brutalidade da ditadura quanto pelo tempo. Ele vê um protesto em massa de professores e estudantes marchando pela cidade exigindo melhores salários e recursos para as escolas públicas. Ele assina um abaixo-assinado e convoca seus antigos camaradas. “Os jovens continuam a fazer o que nós fizemos.” A nova geração de jovens lutadores também espera por seus cronistas que estenderão suas vidas para além do momento. O ciclo de gerações, de lutas pela democracia e justiça, a diferença e continuidade, ao longo do tempo a serviço da libertação humana coletiva, se unem para formar nossa mais longa duração da juventude. 

Nota do editor: People’s World dá as boas-vindas a esta segunda resenha crítica do romance de Urariano Mota. Uma resenha anterior de Piers Armstrong foi publicada em outubro de 2022. Além disso, Peter Lownds, o tradutor do romance explica como chegou inicialmente a este projeto. E “Open Your Window”, um capítulo do livro, pode ser lido aqui.

Never-Ending Youth

Urariano Mota

Traduzido do português por Peter Lownds