O Caderno de Benjamim, um alento para a literatura e o mundo

Leia a crítica ao novo livro de Edmir Carvalho Bezerra

Pouca coisa me apetece na literatura contemporânea. Não gosto da linguagem seca e curta de algumas narrativas – ou da poesia vazia e sem nenhuma imaginação. A linguagem transmite o que somos e como vivemos, e muito dessa nova literatura contemporânea representa bem a angústia do nada e o esvaziamento de significados que o mundo atual experimenta. Vários poetas acabam por expressar essa solidão inerente das coisas que o capitalismo instituiu, em uma forma tão solitária e vazia quanto o sistema. Mas, para quem deseja mudar a realidade através da própria linguagem, talvez se canse e seja um soco no estômago tanta falta de simbolismo e ritual.

É um alento, neste sentido, o livro do poeta paraense Edmir Carvalho Bezerra, O Caderno de Benjamim. Um livro de poemas com “P” maiúsculo, onde sobrevive a verdadeira poesia, aquela de que sentimos falta e que faria a diferença no dia a dia, não mais uma para reproduzir o cansaço que a objetificação nos traz. Essa realidade esvaziada de significado faz eu compartilhar do mesmo sentimento que o poeta expressa na poesia Para Não Viver Tristezas:

     Um dia, me deu tristeza de tudo.
      Dores pousaram em minhas mãos, em meus ombros.
      O ar era mais pesado que o sussurro;
      minha respiração chorosa.

      Dei para acordar com lágrimas infantis nos cílios,
      Olhava ao meu redor e as coisas pareciam cansadas,
      desbrilhavam; as pessoas olhando para longe,
      a cidade muda, cheia de vazios.

Um mundo que se preenche de vazios, não há outro sentimento a não ser a tristeza para defini-lo. Mas a tristeza aqui é libertadora porque é reveladora, ganha corpo e asas, peso, intenção e “se transforma em lágrimas infantis nos cílios”, ou seja, lágrimas puras diante de uma realidade tão desgastada e maliciosa. O poeta se vê como aquele que desvela as coisas desbrilhadas, isto é, sem brilho, mortas, apenas coisas.

A alienação e o descompromisso são os perigos contra os quais vale a pena lutar – o poeta se lança na aventura de combatê-las através das palavras. “O sussurro mais leve que o ar, e a tristeza mais densa que o corpo unindo-se com a respiração chorosa são as armas materializadas da própria palavra para essa luta pela ressignificação do mundo”.

      Eu quis ir para um lugar
      onde o silêncio não fosse ensurdecedor.
      Senti vontade de tocar a voz
      de um pequeno jardineiro do paraíso,
      ouvir uma canção de um coral de estrelas.

      Eu quis sentar ao lado de alguém
      que estivesse desenhando o oceano.
      olhar o sono daquelas criaturas
      que não vivem entre o bem e o mal.

      Que estribilho inquieto soa nessa minha alma
      desejosa de segurar invisibilidades que voam,
    socorrer as águas que se machucam nas paredes dos cais,
      desembrulhar as nuvens, libertar as chuvas…
      Para não viver tristezas é preciso saber navegar outros
      Interiores.       

Há a estranheza da imagem brotando do silêncio ensurdecedor, mas é porque nesse momento esse silêncio fala mais do que as palavras. O silêncio é imprescindível, como no poema Havia Pássaros na Janela… E o resto talvez fosse sonho. O silêncio e os sentidos num imenso arrebatamento:

Escuto os trovões distantes,
Roucos, quase mudos,
A tempestade arrasta os últimos ventos.
Há pouco, uma nuvem inteira.

Nos vitrais do horizonte,
cacos de nuvens,
pequenas lâmpadas
ora acesas, ora tristes,
cerziam uma aurora ofendida.

Fazia um vazio em volta das luzes,
era o nascimento da escuridão.
[A solidão não é macia]

       Onde todas as tardes dormem
       havia um beija-flor
       se equilibrando
        num fio de cor nenhuma.
        Pingava um aroma de asas.

        Escutas a minha voz?
        Eu amava teus ouvidos.
       Escutavas a voz da minha pele,
       dos meus cabelos,
       dos meus olhos.
        Iniciavas minhas noites.
        [A solidão é um monólogo dentro da gente]

        Há caracóis de pedra
         cantando ao relento
         pequenos pássaros
         estão na janela
         e piam, apenas.
         E parecem moles
         Feitos de sombra.

         Em meio às imagens que voejam,
         careço de desvendar as árvores.
          Para saber o caminho das águas,
          Me santifico de até…!

Edmir recolhe os cacos e todos os pedaços, os fragmentos da realidade para criar uma nova, assim como sonhou os surrealistas porque “era o nascimento da escuridão / A solidão não é macia”, isto é, a solidão se torna algo tateável. Há uma narrativa em cada estrofe, um poema em cada verso, metáforas que desenham uma pintura complexa de sensações e sentimentos. Figuras de velocidade como o vento e o cavalo se contrastam com outras estáticas como o horizonte que se despedaça em vitrais. Todas as figuras de movimento como asas, pássaros, nuvens são inteiras, enquanto as estáticas são fragmentadas, a não ser as árvores e as águas que se tornam seres independentes “a partir das imagens que voejam”. O poeta paraense constrói um vocabulário único e se lança na criação de palavras e verbos, assim como fez Guimarães Rosa.

 Enquanto a imagem do beija flor se equilibrando num fio de cor nenhuma lembrou-me a cena da borboleta do poema Mistério do Sem-Fim, de Cecília Meireles:

No mistério do Sem Fim
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro.
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta.

O beija-flor no fio de cor nenhuma preenche os espaços inquietos da alma e devolve o simbolismo perdido de tudo. Edmir Bezerra tem esse dom de aproximar imagens aparentemente conflitantes criando cenas ilógicas para desbravar a realidade medíocre. A imaginação se torna o que há de mais importante, desenvolvê-la e lhe dar asas com aproximações inesperadas faz desse livro uma experiência impressionante. Sua leitura não deixa de ser uma grande viagem, profunda e plena.

 Para começar, O Caderno do Benjamim não é um livro fácil para o leitor – ele exige que você se entregue à leitura e se debruce completamente nas complexas imagens que ele cria. São poesias que compõem uma narrativa entrelaçada, como se cada uma fosse uma galáxia compartilhando um mesmo universo inteiro e vasto. Apesar do autor denominar que o seu livro “não é um livro de poesia, é um livro de poesia-não-poesia”, o que ele resgata é exatamente a verdadeira essência das coisas, nas quais os nomes são perfeitos rituais dos sentidos que já perdemos.

E não é para menos para um poeta oriundo da Amazônia, profundo grotão da sobrevivência da vida em um planeta cada vez mais objetificado, onde o dinheiro vale mais do que os seres. Só poderia transbordar em seus poemas isso: vida e mais vida.

Poemas em prosa, origamis, poemas curtos, poemas mais longos, elegias, cânticos – todas essas são as formas de buscar as metáforas mais inusitadas que despertam imagens extremas e complexas como estas do poema Ternura:

 Corre o vento do barulho no quintal,
 as sombras põem música nos insetos,
        meu pai parece querer adiar a noite.

        Mama sabe que haverá chuvas e trovões
        vai nos proteger com os lençóis.

        Mama é uma passarinha que não pousa.
        Aceita o desdouro de água esvaziando o calor.
        A sabedoria dela embrulha os nossos medos.

A mãe neste trecho é a passarinha que não pousa, voa como o vento e é presente como a sombra, enquanto a figura paterna tenta adiar a noite, a mãe embrulha todos os medos, ou seja, a figura materna é a chave para enfrentar as emoções com proteção e cuidado. Enquanto a mãe embala o bebê, ela o embrulha de todo mal do mundo.

O poema Ternura, além de lembrar uma cantiga de ninar que a mãe murmura para o seu bebê, lembra também um outro poema conhecido do mesmo nome de Cecília Meireles a Gabriela Mistral. E não há poeta mais completa do que a chilena no que tange à expressão do aconchego e do canto materno. Do mesmo jeito que Gabriela metamorfoseia o corpo da mãe nas Cordilheiras dos Andes, Edmir Bezerra emerge essa lição da floresta, trazendo para a sua poesia o sopro de que a natureza é a mãe de todos os seres, soberana em todos os caminhos e direções.

A maneira como Edmir constrói seus versos lembra Manoel de Barros ou Guimarães Rosa pelo sabor e cor genuínos que cada palavra recebe do local sem perder a universalidade que lhe faz digna do todo. Não há outra palavra para definir a sua obra a não ser encanto. Um encanto cheio de estupefação que se completa na leitura de cada poema e na leitura do todo, pois cada poema compõe uma narrativa maior que entrelaça por todo livro, ou melhor, por todo caderno. São entrelaces de magia, pureza e medo. Arrebatamento de cores, de sonhos. Arrebatar o medo de descobrir que não há limites para a poesia.

O que é um caderno senão um lugar onde guardamos – além de todo conteúdo de uma ciência – os nossos segredos, nossos rabiscos, nossos medos e nossos encontros e desencontros? Edmir Carvalho Bezerra nos convida para ver o seu que multiplica os convites e as histórias que não foram contadas ou que deixaram de ser contadas. Ressignificar o mundo e reiniciar uma narrativa humana mais plena é o que este grande poeta nos chama a fazer com a leitura deste livro inteiramente maravilhoso. Tenho a verdadeira impressão de que O Caderno de Benjamim merece figurar nas mais altas galerias da Literatura Brasileira.

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Um comentario para "O Caderno de Benjamim, um alento para a literatura e o mundo"

  1. Cláudio Savazzoni disse:

    Parabéns

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