A grande Mostra Internacional de Cinema de São Paulo tinha no Cinearte/Conjunto Nacional uma espécie de bunker
Publicado 19/02/2020 23:20 | Editado 19/02/2020 23:21
Quem mora em São Paulo e gosta de cinema teve hoje, de uma tacada só, duas más notícias: o fechamento do Cinearte e a morte de José Mojica Marins, o Zé do Caixão.
Falo primeiro da segunda notícia. Embora não morra de amores pelos filmes do Zé do Caixão, aprendi a respeitar essa figura fantástica – talvez o mais original dos nossos cineastas. As “personas” do cinema brasileiro saíam de cena uma e uma. Zé do Caixão permaneceu no nosso imaginário por um tempo maior – mais de 50 anos. Muitos de nós, aliás, o conhecemos mais pela TV (no velho Cine Trash, da Band) do que no cinema.
Em 2001, numa ida ao Sintratel (Sindicato dos Trabalhadores em Telemarketing), na Rua Doutor Frederico Steidel, na Santa Cecília, uma dirigente sindical me disse: “André, sabe quem é aquela figura do outro lado da rua?”. Era ele – o próprio Zé do Caixão. Deixei de assessorar o Sintratel, mas fui muitas vezes à Frederico Steidel por outra razão: era lá que meu saudoso amigo e camarada Joel Batista estacionava o carro. Quando eu o acompanhava a fim de pegar uma carona para casa, nos idos de 2010 e 2011, volta e meia me deparava com o Zé do Caixão andando pela calçada.
A única vez em consegui vê-lo no cinema foi em 2008, na estreia de Encarnação do Demônio, um dia depois do meu aniversário. O filme não chega a ser ruim, mas é difícil dissociar ator e personagem quando o elenco conta com Jece Valadão, Zé Celso Martinez Corrêa e o próprio Zé do Caixão – só para ficarmos nos mais conhecidos. Valeu a experiência!
O Cinearte, por outro lado, sempre foi uma de minhas salas de cinema preferidas. Fica num lugar igualmente benquisto – o Conjunto Nacional, que, de quebra, abriga a Livraria Cultura. Um hábito que cultivei por muito tempo foi chegar lá meia-horinha antes de uma sessão, tomar um bom expresso duplo num dos quiosques, assistir ao filme e depois passear pela Cultura. Fiz isso dezenas de vezes – e sei que não sou o único.
A grande Mostra Internacional de Cinema de São Paulo tinha no Cinearte/Conjunto Nacional uma espécie de bunker. Ali se vendiam catálogos, ingressos, camisas, canetas e canecas da Mostra. Por muito tempo, os melhores debates de cada edição aconteciam lá. Um desses debates foi marcante para mim, a ponto de eu me lembrar até da data: 25 de outubro de 2005.
Corria a 29ª edição, quando o evento se chamava “Mostra BR de Cinema” e seu idealizador, o Leon Cakoff, ainda estava entre nós. Fernando Meireles acabara de lançar O Jardineiro Fiel e faria um bate-papo com o também saudoso Rubens Ewald Filho. Na época, minha companheira e eu morávamos, estudávamos, trabalhávamos e, claro, curtíamos cinema juntos. Só que, na noite anterior, tivemos a pior briga do mundo – aquela que deixou claro que a relação havia chegado ao fim. Cada um dormiu num canto, mas tínhamos a faculdade de jornalismo e a obrigação de terminar nosso trabalho compartilhado de conclusão de curso – um livro de entrevistas com críticos de cinema. Combinamos, então, de nos encontrar lá. Como se nada tivesse acontecido, chegamos com uma hora de antecedência, sentamos, planejamos umas entrevistas, aproveitamos o debate e conseguimos atenuar o clima ruim. O cinema faz milagre!
Vi filmes no Cinearte de manhã (lembro a cabine de Durval Discos), à tarde, à noite e até de madrugada (na pré-estreia de Tiros em Columbine). Houve uma ou duas vezes em que fui o único espectador a pagar ingresso – e, mesmo assim, não suspenderam a sessão.
Quando comecei a frequentar o Cinearte, a concorrência no circuito Avenida Paulista/Rua Augusta era brutal. Frequentei algumas salas que já se foram, como o Top Cine e o Gemini. Vi surgir a Reserva Cultural (onde eu tinha desconto por ser estudante da Faculdade Cásper Líbero). Fui à reabertura do Bristol. Acompanhei o vaivém do Belas Artes, a troca de nome do Espaço Unibanco de Cinema (agora Espaço Itaú). Tomei umas cervejas enquanto via filme no bar no CineSesc.
Mas, para ficar numa sessão memorável, volto ao dia 7 de setembro de 2002, um sábado. Vários amigos da faculdade combinamos de passar a tarde na casa do Fernando Damasceno e depois ir ao Cinearte para ver Cidade de Deus. Salvo engano, éramos dez ou mais. Vai me faltar memória, mas estavam lá o Renato Torelli, o Guilherme Felitti, a Mariana De Lucca, a Paula Andrade, a Mariana Brambilla Basso, a Karin Hetschko, a Cristina Morgado, a Ana Paula Sousa, a Tatiana Napoli Ament e não lembro mais quem. No finzinho do filme, o personagem Buscapé faz um comentário bem depreciativo às mulheres jornalistas – o que rendeu boas risadas no pós-sessão. E acho que ainda fomos comer uma pizza, ou algo do tipo, pela região.
Enquanto escrevo estas linhas, as duas salas do Cinearte exibem as últimas sessões na história desse bom e velho cinema de rua – ou, vá lá, de boulevard. Os multiplexes e cinemarks da vida venceram, o que valoriza a qualidade da exibição, o conforto, etc. Mas a experiência de tomar um expresso no quiosque do Conjunto Nacional, ver um bom filme no Cinearte e depois folhear uns livros na Cultura será sempre única!