Sem categoria

Photografia antiqua de São Paulo de Piratininga, ou a revolução de 1924

''Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.''


(in Brás, Bexiga e Barra

No episódio da Revolução de 1924, não posso aqui deixar de mencionar de maneira fictícia, a participação da família do garoto Gaetano, legítimo ítalo-paulista, tão bem lembrada pelo Antonio de Alcântara Machado em suas novelas paulistanas.


 


 


O Gaetaninho, bem que havia percebido que algo estava acontecendo. A Mãe dele, a Carmela estava recolhendo objetos pessoais, roupas e as compras da venda e empacotando tudo do jeito que dava. Com pressa.


 


 


-Mama, cosa fare ?


 


 


-Stare zitto, Gaetano. E vê se me ajuda a tua mama, tá?


 


 


E o Gaetaninho pôs-se a depositar objetos: talheres de prata, roupas, relógios e jóias sobre o lençol, que após a conferência da dona Carmela amarrava pelos quatro cantos formando uma grande trouxa.


 


 


Nisso ouve-se a buzina da máquina de aluguel do Rashid, o chofer de praça do Bom Retiro, que fazia ponto na Estação da Luz. O Beppo, pai do Gaetano irrompe, totalmente alterado e molhado de suór.


 


 


-Andiamo, presto súbito. Vamos logo, que o exército já está em Santo Amaro. Ouvi dizer que o Arthur Bernardes me vai jogar bombas nas casas da Moóca, per causa da fábrica do Conde Rodolfo Crespi. Andiamo, presto!


 


 


-Papá, onde vamo nói?


 


 


-Pra Sorocaba, pra casa do tio Pascoale Mitidiero, ricorda?


 


 


-Si, papá. Andiamo.


 


 


Saem para a rua Javari. Colocam a ''mudança'' no porta-malas do carro de praça. Um moleque oferece uma edição do ''O Estado de São Paulo''. O Beppo lê e pede que o Rashid saia o quanto antes. No jornal dizia-se que as forças legalistas queriam invadir São Paulo aproveitando-se de que a maioria dos revoltosos estavam em campanha na região de Registro, aguardando os exércitos do Sul, e outra parte estava em Caçapava, aguardando o exército de vinha o Rio de Janeiro e de Minas. Era a manhã do dia 5 de julho de 1924.


 


 


Nas ruas muita confusão. O Sr. Argemiro, português dono de uma venda de secos e molhados, passou correndo pela família do Beppo, demonstrando estar totalmente fora de si. Mais atrás, a dona Maria do Céu, vermelha de emoção e nervosismo, narrou pra Carmela da invasão dos praças revoltosos, que levaram tudo que tinha na venda. O Beppo mais do que depressa apressou o Rashid.


 


 


-Andiamo tutti. Vamos Rashid. Vamos pra Sorocaba.


 


 


Durante as quatro horas de viagem pela estrada de terra até Sorocaba, Gaetaninho ficou se perguntando: será que o Brasil me foi entrar na guerra?. Que sei?, pensou, e voltou a entreter-se com o aviaõzinho de madeira que tinha ganho no natal do ano anterior. O exílio do Gaetaninho e da família durou um mês, uma semana a mais que a ocupação que a cidade de São Paulo foi vítima.


 


 


Em Sorocaba, o Beppo juntou-se aos revoltosos. Aliado com estudantes, Políciais Militares e o novo Corpo da Guarda Municipal, planejaram a defesa de Sorocaba, caso as forças legalistas chegassem até lá. Só então soube dos acontecimentos. Nessa época, o estado de São Paulo passava pela pior seca já registrada na região. O prefeito de São Paulo, Firmiano Morais Pinto, já estava pensando em racionamento.


 


Beppo ficou sabendo também que exatamente no dia em que fugiu de São Paulo, as forças legalistas usando aviões da primeira guerra mundial bombardearam aleatóriamente, e 'as cegas, vários bairros de São Paulo. Foram bombardeados o Brás, Cambucy, Moóca, Ipiranga e o Belenzinho, além de algumas indústrias como uma forjaria na Avenida Tiradentes, o Moinho Santista e a Indústria Matarazzo. Uma das bombas do avião legalista, derrubou uma parede do prédio da Polícia Central de São Paulo, a casa de uns italianos no Belenzinho, a porta de uma igreja no Cambucy, entre outros alvos. Segundo depoimento do prefeito de São Paulo, Dr. Firmiano, mais de quinhentas pessoas entre civís e militares dos revoltosos chefiados pelo General Isidoro Dias Lopes morreram nas escaramuças. O número de pilhagens, tanto pelos revoltosos, quanto pelos pobres moradores dos cortiços de São Paulo foi muito grande. Em alguns bairros, como o Brás e o Cambucy, raríssimo eram os armazens que não haviam sido pilhados pela rór. Após uma discussão brusca entre o prefeito de São Paulo e o general Isidoro, foi dado por esse o direito do prefeito continuar sua função, e assim ele fundou a Guarda Municipal e uma Comissão de Abastecimento, para tentar ajeitar a situação. O Beppo soube também que o ''presidente do estado de São Paulo'', Carlos de Campos, se refugiou em Quitaúna, onde havia um regimento de infantaria, o 4º RI, a lhe dar proteção. O estado ficou sem governador por vinte e três dias, período que durou a ocupação dos revoltosos. O prefeito era a única autoridade civil na cidade. Os revoltosos, fugindo dos legalistas, foram acabar em Foz do Iguaçu, sudoeste do estado do Paraná e acabaram, em sua maior parte, fazendo parte da Coluna de Miguel Costa e de Luis Carlos Prestes.


 


 


Os legalistas não suportavam o frio que fazia em São Paulo e a garoa londrina era detestável tanto pelos nortistas e mineiros quanto pelos cariocas. E demoraram 23 dias para vencer a ''resistência'', sendo que o bombardeio foi elemento importante no evento. Dos 14500 soldados legalistas que lutaram contra menos de 4000 revoltosos, que quase na totalidade fugiram para o Sul. Três anos depois do evento, vários líderes da Revolução foram condenados 'a prisão pelo governo de Arthur Bernardes.


 


 


Por telefone o Beppo falou com vários patrícios, inclusive com o conde Crespi e ficou sabendo que já podiam voltar para São Paulo. Na volta, o Gaetaninho pode constatar que a cidade estava cheia de entulhos. O povo paulista pegou então em pás e picaretas, vassouras e enxadas e começou a limpeza e a reconstrução. [No final do mandato de Arthur Bernardes, Washington Luis tomou posse, mas seu governo era fraco e foi deposto pela Revolução de 1930, quando Getúlio tomou posse como governo provisório. Em 1934 Getúlio foi eleito presidente (pela assembléia constituinte); em 1937 instalou o Estado Novo. Getúlio por várias vezes se desentendeu com os paulistas. Em 1945 Getúlio foi deposto, assumindo o Ministro José Linhares, até que o General Dutra assumisse em 1946].


 


 


[Getúlio Vargas continuou tendo problemas com paulistas. Alguns anos depois, foi a vez dos Integralistas, comandados por Plínio Sampaio, colocarem-se primeiro a favor, depois contra o governo ditatorial de Vargas]. Em plena Rua Javari, na Moóca, o Gaetaninho, vestido de verde e tendo um sigma maiúsculo no braço do uniforme, olhou para a casa semi destruída pelo bombardeio de 1924, fez posição de sentido e saudou: Anauê!


 


 


A garôa paulista continua cobrindo a décima cidade do mundo em população. Pontes, prédios, viadutos, grandes avenidas, uma indústria forte e um comércio pujante, fazem de São Paulo nesse início do século 21 a artéria principal do país. Quase nada de importante é negociado, contratado, projetado, exportado ou importado no país, sem que São Paulo participe de alguma maneira. Getúlio suicidou-se em 1954. Plínio Salgado não conseguiu o poder como pretendia; ele que criou o Integralismo em 1932, morreu no dia 8 de dezembro de 1975.


 


 


O Gaetaninho ainda vive na zona leste da capital paulista. O sr. Gaetano, hoje com noventa anos de idade, guarda na lembrança os vinte e três dias que abalaram São Paulo.


 


 


Visitei-o em 22 de agosto de 2004. Disse a ele que faz oitenta anos que São Paulo foi bombardeada.


 



-Pouca gente sabe disso, disse-me ele. Hoje a cidade vive sendo bombardeada por alguns revoltosos que não existiam naquela época. Hoje têm revoltosos por intolerância. Você sabia que na região da Praça da Sé tem gente mendiga, desses moradores de rua, que estão sendo assassinados? Na Rua Tabatingüera, na Rua São Bento, na Rua da Glória, na Rua 15 de Novembro… – Será que daqui há oitenta anos vão se lembrar desse bombardeio?


 


 


E completou nosso papo coma seguinte frase:


 


 


-Ma, come diccevo la mia mama Carmela, stare zitto, Gaetano…