Sim, elas sim

O sofrimento e grito de libertação de muitas mulheres que antes lutaram, reverberam nas guerreiras de hoje fazendo-as ocupar os espaços que sempre foram delas.

Dona Ivone Lara - Divulgação

Se viver ou sobreviver de música é uma atividade difícil no Brasil para homens brancos de classe média, imagina para mulheres, negros e/ou transgêneros. A arte torna-se uma atividade onde todas as barreiras possíveis e impossíveis trazem a limitação de mercado.

Assim como na música, são limitações que encontramos em diversas profissões, mostrando-nos claramente a desigualdade imposta pelo próprio sistema conservador dentro de uma sociedade que vem, através de muitas lutas de resistência colocando a mulher e seus direitos no centro dos debates.

Neste artigo é importante ressaltar que como um pesquisador e historiador da Cultura, além de músico, ator e compositor, me deparei com grandes dificuldades ao buscar, nas formas mais simples de pesquisa por meio de sites e plataformas de informações na web, histórias e métodos de construção musical das compositoras e não de compositores.

É inegável o tamanho da riqueza e diversidade cultural que possui o povo brasileiro, assim como já nos apontava o genial antropólogo Darcy Riberio em sua obra O Povo Brasileiro, abordando a formação cultural e a colonização de forma direta e de simples acesso a todos os cidadãos e cidadãs.

Nossa análise tem como objetivo pautar e colocar no centro deste artigo as mulheres da música, compositoras, autoras, cantoras, cantautoras, musicistas e intérpretes.

Começo por falar de todo o conservadorismo impregnado na história de nosso Brasil. Um conservadorismo que nos traz machismos e racismos estruturais, além do preconceito de gênero e desigualdade social. Um sistema que coloca às margens da sociedade tudo, todas e todos que não andam de acordo com as regras e padrões ditados por uma minoria de poderosos e gananciosos.

No decorrer de nossa história, as mulheres – nesse momento quero falar sobre elas – sofreram as consequências de um sistema que as coloca num determinado lugar. Como diz a canção de Ataulfo Alves e Mario Lago: “…Amélia não tinha a menor vaidade, Amélia que era mulher de verdade…”. Essa frase, assim como toda a canção já foi desconstruída pela compositora Pitty na atualidade, momento em que a mulher vem se libertando das amarras e se empoderando, buscando o lugar que é seu por direito de igualdade.

Trazendo todas as problemáticas sociais enfrentada pelas mulheres, na música não é diferente. Vamos buscar em nossa história, mais precisamente da composição musical e veremos o tamanho da herança deixada e refletida nos dias de hoje.

Entre os séculos XIX e XX, uma das poucas atividades que a mulher tinha permissão de realizar era o estudo da música. As mulheres tinham como seu companheiro de estudo o piano. As produções musicais das mulheres, incluindo as novas composições, não podiam ser mostradas ao grande público devido aos obstáculos que as próprias famílias colocavam, repreendendo-as. Essas repreensões eram praticadas por toda uma sociedade conservadora e não se davam apenas no quesito musical, mas em todas as outras ações que subvertiam os valores firmados pelo conservadorismo.

Assim muitas dessas composições femininas ficaram anônimas e muitos homens se apropriaram de tais obras tidas como folclóricas, registrando-as em seus próprios nomes. Algumas mulheres escondiam seus nomes atrás de pseudônimos masculinos.

Muitas dessas mulheres quando se casavam, abandonavam suas atividades musicais de compositoras ou de cantoras, como foram os casos de Aurora Miranda, irmã da Carmem Miranda e Celly Campelo, além de tantas outras.

Segundo a professora e pesquisadora Clécia Pereira: “É marcada pelas inúmeras construções que não são exaltadas muitas vezes e nem lembradas pela consideração machista de não destacar as produções intelectuais femininas. Porém mesmo diante de tantos entraves, lá estão elas, produzindo, perpetuando e trazendo sua marca aos espaços que ocupam nos mais diversos setores sociais”.

Chiquinha Gonzaga

Tomemos como exemplo a história de Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a Chiquinha Gonzaga. Nascida em 1847, era filha de militar do Império e afilhada de outro militar, o Duque de Caxias.

Mesmo com toda a genialidade e musicalidade que transformou a musicista e compositora em ícone internacional, durante toda a sua vida ela foi julgada e repreendida pela sociedade, o que a levou perder as guardas de três de seus filhos. Chiquinha se casou três vezes, sendo que seu último casamento foi alvo de mais um dos escândalos da época, pois se tratava de um rapaz português com seus dezesseis anos de idade, no tempo em que a artista estava com seus cinquenta e dois anos em plena maturidade. Uma relação movida por amor e que duraria até o fim da vida da compositora em 1935 aos seus oitenta e sete anos.

É possível, através da história, enxergarmos todas as opressões pelas quais as mulheres compositoras e musicistas passaram. Se olharmos um pouco mais adiante encontramos a maravilhosa compositora Maysa que se casou com um dos membros da tradicional família Matarazzo e teve sua vida artística reprimida no tempo em que ficou nesse casamento, retomando a sua carreira após a separação.

Já Dona Ivone Lara, sambista, compositora do mais alto grau do samba, sofreu bastante preconceito no início de sua carreira como compositora de samba, mas com o passar do tempo foi ganhando o respeito dos compositores, de outros artistas, da própria família e do público de uma forma geral pela brilhante forma em que compunha as suas canções.

Inclusive foi a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de uma escola de samba no Rio de Janeiro. A escola Império Serrano em 1965.

Essas mulheres, compositoras, cantoras e artistas são referências e exemplos para todo um movimento que na contemporaneidade se mobiliza em torno do segmento musical, fazendo a voz da mulher ecoar pelos quatro cantos do mundo por direitos de igualdade. Além das compositoras citadas, podemos ainda falar de algumas que se tornaram símbolos do empoderamento feminino como é o caso de Jovelina Pérola Negra, Joyce, Angela Rô Rô, Cassia Eller, Zélia Duncan, entre tantas outras.

Na atualidade um grande movimento derivado do rap e do funk surge, colocando a mulher compositora no auge de todas as paradas de sucesso. Anita, Ludmilla, além das compositoras do sertanejo como Marília Mendonça e também dos movimentos LGBT com Pablo Vittar e Majur.

Se o preconceito acabou? Se findaram as opressões? Acredito que não. Apenas o sofrimento e grito de libertação de muitas que antes lutaram, reverberam nas guerreiras de hoje fazendo-as ocupar os espaços que sempre foram delas e que por muito tempo nós homens, as impedimos de ocupar por meio de repressão. Ele não, elas sim!

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