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Uma deusa sem pudor e sem pecado

Desde que comecei a escrever crônicas regularmente – já faz quase uma década – , tenho utilizado, como estrutura, um figurino aproximado aos clássicos do gênero. Isto é: a partir de uma notícia, ou do registro de um fato ou de um  pensamento corrente

Outro figurino do gênero, bastante usado, é – a pretexto de algum acontecimento – remexer nas memórias pessoais, explorando ilações com episódios vividos e, finalmente, tirar uma moral da história. Eu (como incomodam, nas crônicas, esses eu, eu, eu) tenho evitado fazer uso de referências pessoais, mas, ultimamente, tenho cedido a sugestões generosas de alguns leitores e, perdendo a compostura, parece-me que estou criando um terceiro formato, miscigenando figurinos tradicionais. Mas, enquanto os leitores e eu acharmos alguma graça nisso ou, pelo menos, nos suportamos cordialmente, continuarei fazendo algumas incursões nesse gênero três, fuçando no meu arquivo biográfico.
   
 
Mal terminei de escrever essa introdução (ou justificativa?) me caiu no colo o assunto de hoje. Ou, melhor dito, tomei nos braços a mulher mais bonita da história do mundo. A criatura chama-se Vênus, deusa do amor e da beleza. Nasceu em tempos imemoráveis e a idealização dos seus encantos inspirou, durante séculos, obras primas de dezenas e dezenas de artistas, hoje venerados como outros deuses.
         
          
Pronto. Agora vamos à historinha pessoal, um bom pretexto para introduzir o assunto. Anos atrás, antes de me naturalizar nordestino, eu vivia em São Paulo e, entre outras atividades, dava cursos livres de História da arte. Usava um método que eu mesmo tinha criado e a assistência era de um público bastante heterogêneo, que ia de universitários a jornalistas e médicos (inclusive um par de freiras!). Uma seqüência de aulas era dedicada ao nu na arte. Iniciava a tarefa projetando a figura de uma mulher nua, numa fotografia esquálida, como se fosse um mero registro de anatomia, ou seja, a modelo nua sem fazer nenhum gesto ou assumir qualquer pose que a tornasse atraente. A partir daí, dava um pulo para a arte greco-romana (covardia!) para provar e comprovar  o que acontece quando uma figura é moldada e interpretada por um artista. Aí, projetava a imagem de uma escultura de Vênus (Afrodite nos primórdios) escolhida entre aquelas obras em mármore resgatadas nas escavações arqueológicas. Nessa altura sentia-me obrigado a abrir um longo parênteses sobre a cultura clássica para servir como modelo de análise para todos os períodos históricos e, conseqüentemente, artísticos que teríamos pela frente. Um momento sempre difícil de superar era a influência das crenças religiosas sobre as concepções artísticas, como, por exemplo, reconhecer que o politeísmo era mais liberal e mais fecundo do que o monoteísmo para provocar a criatividade dos artistas; aceitar que os deuses do Olimpo, que regiam todos os fenômenos da natureza e todos os sentimentos humanos, podiam até cometer safadezas, mas desconheciam a noção de pecado; assim como não existia qualquer convicção de pudor que poderia levar à pratica da hipocrisia. As provas das minhas argumentações – essas como muitas outras – vinham vindo ao longo do curso. Exemplo: as únicas mulheres peladas que apareciam nas iluminuras  da infindável Idade Média eram as Evas. Mesmo assim, sempre representadas com as caras envergonhadas e tendo providenciais galhos de árvore protegendo o sexo. Finalmente, porém, a pressão de intelectuais para restaurar o direito ao conhecimento (Humanismo, fim do século14) dobrou a  intransigência da Igreja. E, daí em diante, a personagem pagã de Vênus passou a inspirar grandes pintores até a metade do século 19 (Romantismo). O interessante é que todos eles a representaram de forma parecida: completamente nua, mas sem apelo erótico. Sedutora, mas de uma beleza inatingível.  
          
 


Essa foi a minha aulinha de hoje. Matei a saudade.