Urariano Mota: Gilberto Freyre

Nos 120 anos do nascimento do pernambucano Gilberto Freyre, o Prosa, Poesia e Arte o homenageia com o artigo de seu conterrâneo Urariano Morta, extraído do Dicionário Amoro do Recife. Confira!

Na Wikipedia se escreve que Gilberto Freyre, nascido no Recife em 15 de março de 1900, e falecido na mesma cidade em 18 de julho de 1987, foi um polímata brasileiro. Como escritor, continua a informar a Wikipedia, Gilberto Freyre se dedicou à ensaística da interpretação do Brasil sob ângulos da sociologia, antropologia e história. E que foi, continua a informação, também jornalista, autor de ficção, poeta e pintor. Ponto?

Reticências, porque já se percebe que a Wikipedia é descritiva, mesmo quando elogiosa. Pois mesmo ao qualificar Gilberto Freyre como polímata, que é o indivíduo estudioso ou conhecedor de muitas ciências, um significado que os dicionários dão como sinônimo de polígrafo, ou seja, o indivíduo que escreve sobre assuntos diversos. De passagem, observo que de “muitas ciências” para “assuntos diversos” há um salto no abismo, mas não importa, porque os dicionários funcionam às vezes como arrastões de peixinhos, algas ou lagosta. O fato é que, mesmo neste passo de qualificar Gilberto Freyre como polímata, nada se fala ou quase nada se adivinha do seu papel de fecundador de gerações no Brasil.

Um polímata pode ser qualquer um mais afoito, ou, nestes tempos de Google, um indivíduo que copia e cola com um faro semelhante ao dos cães. O que significa mau polímata, ou papagaio do presente na internet. Assim não foi Gilberto Freyre. Ainda que se acrescentem a seu perfil as atividades de jornalista, escritor de ficção, poeta e pintor, em uma excelência de universalidade, como se ele fosse um novo Leonardo da Vinci, pois não se atenta à qualidade do que ele compôs nessa ambição, o mais próprio seria dizer que nas obras de sociologia por ele escritas é que se encontram essas qualidades fundidas e unas.

E mais: que os seus livros se apoiavam em pesquisas originais, tidas até então como indignas, de receitas de cozinha aos anúncios de escravos nos jornais, de fotos de álbuns à composição de fezes reveladora do regime alimentar. Um pesquisador raro. Uma inteligência e sensibilidade de gênio a serviço do objeto que estudava. Original e mui confiante desse espírito original. Afoito, com aquela afoiteza que caracteriza os que têm a consciência do próprio valor.

Bom, pago o crédito, o tributo necessário a Gilberto Freyre, passemos a linhas menos entusiasmadas, no limite deste espaço.

Certa vez, recebi por e-mail uma boa provocação, que me perguntou: “E Gilberto Freyre? Casa-Grande & Senzala é do mesmo ano que Evolução Política do Brasil de Caio Prado. Gilberto Freyre pretende ter sido o primeiro a fazer uma leitura materialista da história brasileira. No caso, a base da concepção dele era o latifúndio monocultor de cana, o trabalho escravo e a casa-grande. Sobre essa base ele descreveu a sociedade senhorial brasileira. Mas, apesar dele ter resgatado o negro brasileiro do mar de preconceitos em que vivia mergulhado, é tido como um autor conservador para dizer o mínimo. Gilberto Freyre, por exemplo, organizou o primeiro Congresso Afro-Brasileiro e, no entanto, o atual movimento negro detesta Gilberto. Aguardo sua fala”.

Ao que respondi então e recupero aqui:

A provocação é maior que a minha competência em respondê-la. Mas vamos, nas medidas da minha (in)capacidade e espaço breve desta resposta.

Casa-Grande & Senzala, dos livros de análise histórica surgidos no século 20, é para mim o que vai atravessar a nossa e as vindouras gerações. Tem a qualidade de ser bem escrito, e bem escrito de tal forma, que mais parece literatura, romance. Esse Freyre era um homem de extrema sensualidade, que tinha, entre outras perversões, o gosto da prosa. Não há livro científico tão bem escrito quanto Casa-Grande. Minto: talvez só A Origem dos Sonhos, de Freud. E o seu conteúdo (supondo uma separação dura de forma e conteúdo)?

Em uma época de doutrinas racistas no Brasil e no mundo (lembremos o grande Euclides da Cunha a falar de raça frágil em Os Sertões), onde sempre se disse que nós éramos sub-raça (até hoje há quem insista nisso) por força da miscigenação, Gilberto Freyre destacou o avanço da mistura de raças, e não só a mistura, Freyre ressaltou o papel do negro como agente da nossa formação cultural e de raça. Ele chega a frases lapidares, na resposta que dá à ideia reinante de que o negro era feio: “feia é a miséria” (em que o negro vive). Lembro – e tudo que digo aqui é de memória, sem consulta – do destaque dado por ele a alguns grupos de negros, muçulmanos, que eram alfabetizados, artesãos sofisticados, escravos de senhores de engenho analfabetos. (Isso ocorreu com mais frequência na Bahia.) Casa-Grande é ainda um avanço – não sei de outro livro semelhante a ele – pela originalidade das fontes de pesquisa: livros de receita das casas-grandes, fotos, cartas íntimas, anúncios de jornais de escravos fugidos e comprados, e, até, acredite, para falar da dieta pobre, mas rica de calorias do português, pelo tipo de fezes comuns ao nordestino da zona açucareira.

Notem que o livro é de 1933, e chegou a ser mandado queimar pelos padres da igreja em Pernambuco. Coisa herética, do diabo, com suas revelações vexatórias da vida sexual, promíscua nos engenhos, em que às vezes as crianças negras papavam o “rabo” dos meninos brancos.

Na época, Gilberto Freyre era um homem de esquerda, não comunista, mas de esquerda, e teve ativa participação nos movimentos pela redemocratização do Brasil, na saída do Estado Novo de Vargas. É da época dos anos 60 a sua postura à direita. Agora, um ponto nevrálgico de Casa-Grande: é um livro que, ao lado dos avanços, reproduz também os limites do seu autor e da sua classe: Gilberto Freyre é filho e neto de senhores de engenho, um sujeito culto, genial, portanto “ovelha negra” em seu meio (cultura, talento e civilização sempre aguçam conflitos, em lugar de apaziguá-los), mas filho dos seus limites de tempo e de classe.

Isso quer dizer: ele não vai fundo na violência e violentação sofrida pelo escravo. Ele não chega ao extremo de outro grande brasileiro, Joaquim Nabuco, que em alguns trechos de Minha Formação tornava lírica a relação entre escravos e senhores da sua infância. Mas faz, é verdade, uma defesa e ataque contraditórios, às vezes em um mesmo parágrafo, do engenho e da senzala. Em resumo: esse grande livro, em 1933, foi uma revolução. Mas o tempo e a democracia ultrapassaram o seu diagnóstico da escravidão. No entanto, creio que os movimentos mais radicais de consciência negra muito teriam que aprender em estudar Gilberto Freyre. Superar é uma forma de assimilar a tradição.

E continuo agora, num acréscimo. Darcy Ribeiro dizia ser Casa-Grande & Senzala o mais brasileiro dos livros. Creio que devemos tomar tal afirmação em mais de um sentido. Em um sentido positivo, creio que Gilberto Freyre fez pela cultura brasileira um trabalho semelhante ao de Gabriel García Márquez pela literatura. Essa aproximação não é gratuita. Os dois se aproximam pelo reconhecimento e dignidade que deram à identidade de povos tidos como subdesenvolvidos, quase inumanos. Brasileiros, em Gilberto Freyre, latino-americanos com Gabriel García Márquez. São dois gês.

Mas ele é, seguramente, o homem que glorifica a colonização portuguesa. E nesse caso, tão brasileiro, pela dissolução da crueza com ares de fazer graça, entre um pigarro no cachimbo e um costume bárbaro, como quem dilui a violência com uma piada. Nesse caso particular, é preciso vencer Gilberto Freyre. Vencê-lo no sentido também de uma reação à sua influência avassaladora e paralisante. A sua orientação e influência, como uma gripe inescapável, se estendeu sobre a prosa e poesia dos nossos mais brilhantes escritores, de José Lins do Rego a Manuel Bandeira e Ascenso Ferreira. Também aos maiores pintores, como Lula Cardoso Ayres e Cícero Dias.

O poder da prosa de Gilberto Freyre, a beleza encantatória do que escreveu nos trechos vários em que sacrifica a ciência para não perder o ritmo de um parágrafo, esse poder e esse encanto têm que ser mortos. Mas, antes, ele deve ser muito estudado. Contraditoriamente, antes de vencê-lo, Gilberto Freyre há que ser assimilado. Para que seja superado em uma etapa necessária rumo ao lugar onde a verdade da nossa história seja soberana. E se faça um acerto de contas com o passado escravocrata, estudado por ele a partir da casa-grande, que ainda resiste. Vencê-lo como uma forma de superação necessária. E muito estudá-lo, voltando a suas luzes de escritor, de gênio.

Superar é uma forma de assimilar a tradição.

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Um comentario para "Urariano Mota: Gilberto Freyre"

  1. olá muito obrigado pelas dicas do seu site eu pude compreender como funciona melhor agora kkk
    obrigado e um abraço .

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