“Augustine”: Histeria e paixão

Os primórdios das pesquisas sobre a histeria são o esteio da narrativa deste filme de estréia da cineasta francesa Alice Winocour

O uso do som neste “Augustine” contribui para o entendimento da doença que acomete a garçonete de 19 anos. É como se o espectador, neste filme de estréia da cineasta francesa Alice Winocour, escutasse seu debater interior enquanto ela se contorce perante clientes do restaurante ou os médicos que a tratam no Hospital Pitié Salpêtriere, em Paris. É este som que irá explicitar sua relação com o neurologista Jean-Martin Charcot (1825/1893) e oscilar entre suas convulsões e a manipulação, mostrando a tênue linha divisória entre o real e o encenado.

Às vezes o comportamento de ambos reflete a relação médico/paciente. Noutras torna-se explicita, demonstrando a imposição do desejo que eles não conseguem evitar. Esta dupla atração demonstra o quanto Augustine (Soko) e Charcot (Vincent Lindon) dependem um do outro para alcançar seus intentos. Winocour ao estruturar o filme sobre dois personagens, embora outros gravitem em torno deles, termina por dar a Charcot caráter pioneiro. Mesmo sem buscar profundamente as origens sociais e individuais da paciente, ele muda a visão da “doença”. Sua noção da histeria, no entanto, é do século XIX.

“Charcot buscava atribuir causas anatômicas às patologias. Assim, dedicando-se às histéricas a partir de 1870, de início atribuía as contraturas características do quadro a lesões na medula espinhal; as hemianestesias ao funcionamento do cérebro; e, ainda assim, concedia um lugar de relevo ao papel do ovário para esta moléstia, pois as doentes costumavam apresentar fortes dores nessa região (*). Augustine é para ele uma espécie de “estudo de caso”. Serve para ele avançar em suas teorias e, ao mesmo tempo, firmar sua reputação de médico, obtendo o apoio dos acadêmicos e recursos financeiros através da influência de sua companheira.

Charcot e a psicanálise

O Charcot de Winocour é, assim, um cientista que trafega pelas clínicas do Salpêtriere e os salões e auditórios da alta burguesia. Mas, ela, roteirista e diretora, deixa antevê os contornos do que seriam os primórdios da psicanálise: a histeria, que pode acometer tanto mulheres quanto homens. Freud, também neurologista, estudaria os métodos de Charcot, no período em que esteve com ele no Salpêtriere, para depois mudar todo o conceito e diagnóstico da histeria. Iria tratá-la como neurose, decorrente de conflitos psíquicos, de origem social: repressão sexual, pressão familiar e da sociedade burguesa.

Como David Cronenberg em “Método Perigoso” (2011), Winocour mostra a fragilidade do médico ao dedicar-se à paciente, a ponto de chegar à obsessão. Augustine, para Charcot, é a um só tempo a paciente que lhe permitirá desvendar a “histeria ovariana” e seu objeto de desejo. O Jung de Cronenberg trata de Sabina Spielrein e se apaixona por ela. Ocorre que Augustine, de uma família de 10 filhos, é mais complexa. Ela aprende durante o tratamento no Salpêtriere seu valor para Charcot. À medida que obtém a cura sente que pode perdê-lo. A saída é manipulá-lo.

Esta duplicidade torna o filme mais denso, cheio de nuances. Apenas Bourneville percebe quando as crises histéricas são reais ou se trata de apenas encenação. E Augustine torna-se mestra em interpretação. A hipnose que Charcot usa para mostrar os sintomas da histeria, que não é epilepsia ou loucura, torna-se desta forma mero ilusionismo. A sequência de sua apresentação na Academia Francesa de Ciências é seu ápice. As convulsões, a paralisia de mão e o fechar das pálpebras tinham acabado. Charcot já não sabe diferenciar ciência/paciente, fica dominado por seu objeto de desejo.

Winocour dá rigor ao filme

Winocour consegue dotar seu filme de rigor estético-narrativo, permitindo ao espectador acompanhar a evolução da relação entre os personagens, mantendo sua câmera sempre próxima deles. Em momento algum foge do tema central: a relação médico-paciente, com os personagens secundários, os assistentes de Charcot e a companheira dele (Chiara Mastroianni), sustentando a trama sem sobressaírem demasiadamente. As sequências se encadeiam dominadas pelos tons sombrios, que acentuam o estado psicológico de Augustine e Charcot e a própria “doença” que acomete a jovem retraída, de poucas amigas, salvo sua prima.

Quando faz um contraponto para acentuar a mudança no tratamento da histeria, Winocour é sutil. Charcot, para mostrar o quanto a ciência contribuiu para a sociedade entender sua origem, observa que durante a Inquisição, na Idade Média, as mulheres acometidas de “histeria ovariana” eram mandadas à fogueira pelo Vaticano. Ele mesmo ignorava que dava apenas os primeiros passos para o entendimento da histeria. Augustine torna-se, ao ser tratada por Charcot, uma etapa da compreensão das mudanças sociais e a maneira de se tratar os conflitos psíquicos. A sociedade é uma fábrica de doenças.

“Augustine” (“Augustine”).
Drama. França.
2012. 102 minutos.
Música: Jocelyn Pook.
Fotografia: Georges Lechaptois.
Roteiro/direção: Alice Winocour.
Elenco: Vincent Lindon, Soko, Chiara Mastroianni, Olivier Rebourdin.

(*) Bleicher, Taís, Freud e a histeria: do biológico ao social, artigo, www.researchgate.net/

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