Miguel Bonasso: Fidel e a dor

Por Miguel Bonasso*
Segunda-feira à noite recebi um telefonema de Havana que me deixou sem alento. Um companheiro argentino me avisava: “Parece que Fidel está mal”, e, de imediato a conversa se cortou, gerando um insuportável suspense. Pouc

De imediato, comecei a ligar para todos os amigos em Havana, sem resultado. As linhas estavam saturadas. Perto da meia-noite consegui estabelecer contato telefônico com um dos colaboradores mais próximos do Comandante. “As coisas são assim”, disse ele, conformado. “Você conhece nossa ética e a do Chefe: jamais mentiríamos nem ocultaríamos nada do povo”.



É certo. Lembrei de Fidel, sentado em uma cadeira, agüentando a dor de sua terrível queda ao finalizar um ato, quando antecipou o diagnóstico dos médicos e explicou ao povo cubano (e ao mundo) que havia fraturado o joelho e o ombro direito. Na segunda-feira à noite, no comunicado lido por seu secretário Carlitos Valenciaga, resplandecia a mesma seriedade, a mesma responsabilidade política, a mesma precisão ao falar de radiografias, endoscopias e até filmagens do inquietante sangramento que o levava à sala de cirurgias. Era o estilo inconfundível de fidalgo que havia cedido transitoriamente a chefia do Estado cubano.



O colaborador de Fidel acrescentou que a operação havia sido exitosa e que começava um processo de recuperação. Suas palavras e seu tom de voz me tranqüilizaram. O episódio era sério, grave, mas o amigo confiava, como eu, na fortaleza do paciente, nesse domínio extraordinário que exerce sobre a realidade seu cérebro privilegiado.



Pensei: “Fidel vai morrer quando ele assim o decidir e ainda não decidiu”.



Recordei uma conversa que tivemos no Palácio de Convenções, há cerca de sete ou oito meses. Parecia abstraído, longínquo, mas subitamente me olhou como se voltasse do futuro e confessou: “O que preciso é tempo”.



Tempo para completar o que ele chama “revolução enérgica” e que vai significar para a ilha uma economia anual de US$ 2 bilhões; tempo para que “Cuba seja economicamente invulnerável, como já o é militarmente”; tempo para reconstruir o Movimento de Países Não-alinhados; tempo para operar de cataratas cerca de seis milhões de latino-americanos nos próximos seis anos; tempo para que os educadores cubanos do programa “Sim, eu posso” ajudem a extirpar o analfabetismo em toda a América Latina; tempo para que se prospere a integração latino-americana.



Tempo, em suma, para consumar uma gigantesca empresa humanística que parece descomunal, impossível, para uma pequena ilha com 11 milhões de habitantes e 110 mil quilômetros quadrados, que sobrevive à força de dignidade, a 90 milhas náuticas no monstro. Que ninguém espere encontrar aqui uma “nota objetiva”: tenho o extraordinário privilégio de contar-me entre os amigos pessoais do Comandante Fidel Castro. É uma honra que concedeu há pouco mais de três anos. Antes eu o olhava como todos os de minha geração, a uma respeitosa distância. Via-o instalado sobre a história mundial, mas ignorava seus rasgos de humor, suas provocações e travessuras, sua fidelidade aos amigos, sua curiosidade pelo humano, sua imaginação de navegante e seus hábitos inveterados de conspirador. Sua real ternura pelos desvalidos.



Uma madrugada falávamos na sala de reuniões do Palácio da Revolução e começou a prognosticar qual era a causa do grande terremoto que acabava de acontecer no Paquistão. “Em pouco tempo virão dos grandes frios e os habitantes dos povos destruídos começarão a vagar sem destino nas encostas das montanhas. Haverá fraturas expostas, gangrenas e dor, uma indescritível dor humana. Temos que fazer algo”.



Poucos dias depois, médicos e paramédicos cubanos começavam a viajar ao Paquistão até completar uma generosa brigada de 2.500 pessoas, que, em quatro meses, atenderiam a 700 mil pacientes. Que permaneceriam com temperaturas abaixo de zero quando os Médicos Sem Fronteiras e de todas as ONGs deste estranho mundo já haviam amarrado suas esteiras.



Em fevereiro, dez dias antes de minha companheira Ana de Skalon morrer de câncer em Havana, ele a visitou, como o fazia com freqüência. Já se ia, quando voltou à sala e disse inesperadamente: “Eu sei que você luta, Anita, e me parece muito bem que o faça, porque nós dois pertencemos à mesma classe de seres humanos.



Ana, em sua agonia, lhe devolveu um sorriso. No dia de seu funeral, quando ele a condecorou como “amiga de Cuba”, me levou a comer com ele. Não falou de Ana durante o almoço, mas enquanto me acompanhava aos elevadores, disse com uma voz inaudível: “Imagine o que sofreu você, o que sofreu Anita e multiplique em nível universal pelos milhões que sofrem.



Entendi, então, o que ele havia dito alguma vez a seu amigo Hugo Chávez, que ele não acreditava na transcendência da alma, mas aceitava que o presidente o incluísse entre os cristãos. Há poucos dias, estive com ele aqui, en Córdoba, na Cúpula do Mercosul. Acompanhei-o no ato, na visita à casa da família de Che em Alta Gracía e em um almoço no mesmo dia de sua partida.



Falamos de tudo um pouco, junto com outros amigos cubanos e argentinos. Até de vinhos. De tintos que ele saboreou conosco.



Não sou médico, mas o vi vem. Animado, otimista. Contente porque 24 horas depois de finalizada a Cúpula, já havia comprado de nosso país cereais e alimentos por US$ 100 milhões. No caminho do hotel, saudou a todos os membros da embaixada cubano e os policiais federais e de Córdoba que haviam cuidado de sua segurança e gostariam de conhecê-lo.



Logo se foi, envolto como sempre em multidões. Assim o quero ver, muito rapidamente, coberto de carinho e da admiração que merece.



* Ex-guerrilheiro argentino, hoje é jornalista e escritor.