Luta de classes nas urnas: o exemplo de São Paulo

Por Bernardo Joffily
Os números do segundo turno presidencial, segmentados por município e zona, confirmam uma elevada polarização de classe. Quem acha que a luta de classes é “moda antiga”, como o ex-sociólogo de certo talento Fernando Henrique Cardos

Os números segmentados fornecidos pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), com os dados por município e por zona, não deixam margem para dúvidas sobre a lógica de classe do voto de domingo. É o que mostra o mapa acima (que pode ser consultado com maior proveito em uma versão interativa, clique aqui para ver).



“Pizzas”, fatias… e o pano de fundo



Aí estão os resultados do segundo turno na grande São Paulo: cada “pizza” tem diâmetro proporcional aos votos válidos de cada zona da capital paulista, ou minicípio da Região Metropolitana; e as fatias azuis, de Alckmin, e vermelhas, de Lula, foram desenhadas proporcionalmente ao desempenho que os dois tiveram em cada local.
As cores do mapa indicam a variável fundamental, o pano de fundo que explica essas variações: a geodistribuição, ou melhor, a geoconcentração da renda na Grande São Paulo, medida pelo critério da percentagem de chefes de família que ganham mais de 20 salários mínimos por mês (a informaç~çao foi tomada do ótimo trabalho de sócio-cartografia do Núcleo de Estudos da Violência da USP, www.nevusp.org).



Os enclaves chiques e a periferia



Veja como o candidato perdedor ganhou, com percentagens consagradoras, nos enclaveschiques da capital paulista. Afora o Jardim Paulista, ele teve mais de quatro quintos dos votos úteis (!) justo na outra Zona Eleitoral onde mais da metade está na cobertura dos com-mais-de-20-mínimos: Indianópolis (81,0%).



Agora observe porque, apesar desse desempenho esplêndido nos bairros ricos, Alckmin terminou perdendo na Região Metropolitana, embora pela mínima diferença de 0,4 ponto percentual. Repare primeiro o mau desempenho na periferia pobre e trabalhadora do município de São Paulo, especialmente as suas extremidades Leste e Sul, ali onde as rendas de mais de 20 salários mínimos não passam de 5% do total.



A Grande São Paulo das cidades operárias



Veja a seguir o favoritismo de Lula nos outros municípios da Grande São Paulo. De um total de 38, ele perdeu em 27 e ganhou em apenas 11. Todos estes são pequenos municípios, exceto Mogi das Cruzes, que teve quase 200 mil votantes para presidente neste domingo.



Confira no mapa interativo como se portaram as grandes cidades operárias — Guarulhos (580 mil votos), São Bernardo (430 mil), Santo André (420 mil), Osasco (400 mil). Veja como em Diadema, um município que praticamente não possui burguesia residente, Alckmin teve de se contentar com 29,6% dos 240 mil votos úteis do dia 29 para presidente.



Marta Suplicy entendeu o que ocorria



Os crentes na superação da luta de classes se enganam. É verdade que os movimentos reivindicatórios dos trabalhadores, no Brasil, enfrentam anos de vacas magras desde a década passada, devido a um complexo de fatores em que se destaca o espectro do desemprego. Mas a luta represada na esfera econômico-reivindicatória terminou se politizando e eleitoralizando. E isto, longe de diluir, potencia o seu caráter de classe.



Marta Suplicy, coordenadora da campanha Lula em São Paulo, percebeu com clareza a polarização que se exacerbava. Embora residente no Jaqrdim Europa e originária de uma próspera família de capitalistas industriais, jogou todo o esforço da campanha nas periferias proletárias, que já havia priorizado em sua gestão na prefeitura.


 


Resultado: na capital paulista, os votos de Alckmin no segundo turno cresceram 3%; os de Lula, 30%.



O fenômeno era tão visível às vésperas do segundo turno que produziu capas quase idênticas de duas das revistas de grande tiragem do país, Veja (Dois Brasis depois do voto?) e IstoÉ (Precisamos unir o Brasil). Em ambos o tom foi de apreensão com a confrontação social que a eleição espelhava.



Um passo à frente



É ocioso discutir se a luta de classes é “um bem” ou “um mal”, e inútil tentar exorcisá-la, apesar das incontáveis tentativas ao longo dos séculos. Ela é um fenômeno objetivo e inevitável da sociedade dividida em classes com interesses conflitantes.



Pode-se porém entendê-la. Pode-se incidir sobre ela. Pode-se fazer com que adquira consciência de si, e persiga plataformas e objetivos definidos por critérios de classe. Foi neste sentido que o Brasil, aos trancos e barrancos como sempre, deu um passo à frente neste segundo turno. Que o digam os proletários de Diadema, assim como, por que não?, os burgueses do Jardim Paulista.