Entidades desafiam justiça argentina: “Não mexam com Perón”

Trinta e três anos depois de seu primeiro atentado, o Triplo A retorna à Argentina, agora agitando o fantasma do terrorismo de Estado. A ex-presidente María Estela Martínez de Perón, a Isabelita, está na mira da Justiça como suposta responsável polític

“Não mexam com Perón”, dizem em grandes letras os cartazes colocados nos últimos dias nas ruas e praças mais centrais de Buenos Aires. São assinados por La Fraternidad, organização gremial peronista que reúne os maquinistas de trens. Os selos da Confederação Geral do Trabalho e das 62 Organizações (gremiais) também aparecem na advertência.


 


O peronismo de mão negra fareja o perigo e avisa. Carlos Ruckauf e Antonio Cafiero, ministros de Isabelita depois da morte do presidente Juan Domingo Perón, também sentem o olhar dos juízes sobre seu passado, quando faziam parte de um governo presidido por uma viúva e manipulado pelo violento Juan López Rega, o Bruxo, ministro do Bem-Estar Social (já falecido), considerado até agora o artífice máximo do Triplo A.


 


Essa organização de extrema-direita atuou na Argentina entre 1973 e 1975. Seu objetivo eram os “zurdos” (esquerdistas) e os “bolches” (comunistas), mas não era necessário pertencer a qualquer formação de esquerda para figurar entre suas vítimas.


 


O senador Hipólito Solari Yrigoyen foi seu primeiro alvo. Em 21 de novembro de 1973, uma poderosa bomba explodiu quando ele ligou seu carro, mas o político se salvou com graves ferimentos. Pouco antes havia denunciado no Senado a consolidação de uma “oligarquia sindical”, o que lhe valeu a honra de ser apelidado de “inimigo público número 1” por importantes porta-vozes da burocracia corporativista.


 


O começo
Aquela data marca a estréia do terror (de Estado) na Argentina. Estabelecer a conexão entre o Triplo A e o terrorismo estatal, desencadeado depois do golpe militar que derrubou Isabelita em 1975, é uma das possíveis conseqüências dos dois processos judiciais em que está envolvida hoje a ex-presidente.


 


Dos possíveis depoimentos da viúva – se é que lembra de algo, pois ao declarar diante do juiz Garzón em 1997 já alegou falta de memória – se poderia deduzir que seu marido – e antecessor na presidência – estaria a par das atividades do Triplo A.


 


Perón tomou posse de sua última presidência depois de 18 anos de exílio, em 12 de agosto de 1973. Hoje peronistas importantes negam com ênfase qualquer possibilidade de que o mítico general tivesse manchado sua estada na Casa Rosada com atividades tão deploráveis.


 


“Colocar Perón nesse assunto é antidemocrático”, declarou Omar Maturano, secretário-geral da Fraternidad. Gerónimo Venegas, líder das 62 Organizações, também não pensa que as responsabilidades políticas possam manchar a memória impoluta do general (na avenida Belgrano há um animado restaurante onde se reúnem seus mais declarados e nostálgicos seguidores).


 


Muitas tendências
O deputado Carlos Kunkel (ex-montonero peronista), por sua vez, afirmou ontem no jornal Clarín que “Perón não teve absolutamente nada a ver com o Triplo A”, antes de afirmar que desacreditar a memória do ex-presidente só “nos prejudica”. Kunkel é apresentado no jornal como um homem “muito próximo de Kirchner”.


 


Hoje na Argentina o peronismo mistura nostalgia com um grande vazio ideológico no qual cabem todas as tendências. Sob a sigla do Partido Justicialista encontram-se políticos tão díspares quanto os ex-presidentes Menem e Duhalde e o atual inquilino da Casa Rosada, Néstor Kirchner. Nas laterais, e com influência notória, as organizações gremiais e sindicais e um sem-fim de grupos de base.


 


Todos com sua interpretação particular da doutrina peronista. Todos convencidos de que sem invocar, pelo menos nominalmente, Juan e Evita Perón não é possível governar um país que continua preso à nostalgia do passado e ao culto, ou profanação, dos mortos.