Fidel analisa etanol brasileiro e pede revolução energética

Em novo artigo a respeito do etanol e do interesse norte-americano pela importação dos biocombustíveis produzidos no Brasil, o líder cubano Fidel Castro faz uma análise apurada a respeito do plantio da cana-de-açúcar em terras brasileiras. Em seu texto, o

Fidel defende que o mundo passe por uma verdadeira revolução energética, a partir do fim do desperdício a da troca de tecnologias ultrapassadas por outras mais modernas e econômicas. Em seu texto, o presidente cubano também critica a libertação do  terrorista Posada Carriles e alerta para o risco de uma recessão na economia norte-americana.



Confira abaixo a íntegra do texto:



O que se impõe de imediato é uma revolução energética



Não tenho nada contra o Brasil. Para bom número de brasileiros, que são martelados incessantemente por argumentos em um e no outro sentido, capazes de confundir pessoas tradicionalmente amigas de Cuba, nossa atitude pode parecer a de um estraga-prazeres que não se incomoda por prejudicar o ingresso de divisas no país. Guardar silêncio, para mim, seria optar entre a idéia de uma tragédia mundial e um suposto benefício para o povo daquela grande nação.



Não vou culpar Lula e os brasileiros pelas leis objetivas que regem a história de nossa espécie. Só transcorreram 7.000 anos desde que o ser humano começou a deixar traços palpáveis daquilo a que podemos designar uma civilização imensamente rica em cultura e recursos técnicos. Os avanços dessa civilização não foram conquistados ao mesmo tempo ou em todos os lugares da geografia. Pode-se afirmar que, devido à aparente imensidão de nosso planeta, em muitos casos a existência de uma e outra civilização passou desconhecida. Durante milhares de anos, o ser humano não vivia em cidades de 20 milhões de habitantes como São Paulo ou a Cidade do México, ou em comunidades urbanas como Paris, Berlim, Madri e outras, nas quais trens transitam sobre trilhos ou colchões de ar em velocidades de mais de 400 quilômetros horários.



Na época de Cristóvão Colombo, há apenas 500 anos, algumas dessas cidades nem existiam, ou não passavam de comunidades com algumas dezenas de milhares de habitantes. Ninguém gastava um kilowatt para iluminar sua residência. A população mundial provavelmente não ultrapassava os 500 milhões de habitantes. Sabe-se que, em 1830, ela atingiu a marca do bilhão; 130 anos depois, se havia multiplicado por três, e 46 anos mais tarde o total de habitantes do planeta atingiu os 6,5 bilhões, em sua imensa maioria pobres, e eles devem compartilhar dos produtos alimentícios com os animais domésticos e, de agora em diante, com os biocombustíveis.



A humanidade não contava então com os avanços da computação e com os meios de comunicação de que hoje dispõe, ainda que as primeiras bombas atômicas já tivessem explodido sobre duas comunidades humanas, em um ato brutal de terrorismo contra a população civil indefesa, por motivos estritamente políticos.



Hoje, o mundo conta com dezenas de milhares de bombas atômicas 50 vezes mais poderosas, com meios de lançamento mais velozes que o som e dotados de precisão absoluta, e dessa maneira nossa espécie pode se autodestruir. No final da Segunda Guerra Mundial, que os povos do mundo travaram contra o fascismo, surgiu um novo poder que tomou o controle do mundo e lhe impôs a atual ordem absolutista e cruel.



Antes da viagem de Bush ao Brasil, o chefe do império estabeleceu que o milho e outros alimentos seriam matéria-prima adequada para a produção de biocombustível. Lula, de sua parte, declarou que, com base na cana-de-açúcar, o Brasil poderia produzir tanto quanto necessário; ele via nessa fórmula um caminho para o futuro do Terceiro Mundo, e o único problema que ainda precisaria ser solucionado era o de melhorar as condições de vida dos trabalhadores rurais do setor açucareiro. Ele estava ciente, e assim o declarou, de que os Estados Unidos deveriam, de sua parte, remover as barreiras alfandegárias e os subsídios que afetam a exportação de etanol àquele país.



Bush respondeu que as tarifas e os subsídios aos agricultores são intocáveis nos Estados Unidos, maior produtor mundial de etanol com base no milho.



As grandes empresas transnacionais norte-americanas que produzem esse biocombustível e vêm aceleradamente investindo dezenas de bilhões de dólares na expansão de suas atividades, exigiram do chefe do império a distribuição no mercado norte-americano de não menos de 132 bilhões de litros desse combustível ao ano. Entre tarifas protetoras e subsídios reais, o montante anual envolvido subirá a quase US$ 100 bilhões.



Insaciável em sua demanda, o império havia atribuído ao mundo a tarefa de produzir biocombustíveis, a fim de permitir que os Estados Unidos, maiores consumidores mundiais de energia, se libertem totalmente de sua dependência quanto a combustíveis fósseis importados.



A História demonstra que a monocultura da cana-de-açúcar esteve associada estreitamente à escravidão dos negros, arrancados violentamente de suas comunidades naturais e trasladados a Cuba, ao Haiti e a outras ilhas do Caribe. No Brasil, aconteceu exatamente a mesma coisa, no que tange ao cultivo da cana.



Hoje, naquele país, quase 80% da cana é colhida manualmente. Fontes e estudos conduzidos por pesquisadores brasileiros afirmam que um cortador de cana, trabalhando informalmente, precisa produzir não menos de 12 toneladas para satisfazer suas necessidades básicas. Esse trabalhador terá de realizar 35.630 flexões de pernas, percorrer 800 vezes o mesmo pequeno trajeto, carregando nos braços 15 quilos de cana, perfazendo um total de 8,8 quilômetros. Ele perde em média 11 litros de água ao dia. Só utilizando as queimadas é possível atingir esse nível de produtividade por trabalhador. A cana de corte manual ou mecanizado precisa ser queimada para proteger o pessoal contra mordidas ou picadas daninhas, e acima de tudo para elevar a produtividade. Ainda que a norma estabelecida para esse tipo de trabalho preveja horário das 8h às 17h, os trabalhadores dessa categoria muitas vezes se vêem forçados a trabalhar 12 horas diárias para sobreviver. A temperatura pode chegar a uma média de 45 graus centígrados, ao meio-dia.



Eu pessoalmente cortei cana em número considerável de ocasiões, por dever moral, e o mesmo se aplica a muitos outros dos companheiros que dirigem o país. Lembro-me do mês de agosto de 1969. Escolhi um local próximo à capital. Chegava à plantação cedinho a cada manhã. A cana não queimada era verde, de variedade precoce e alto rendimento agrícola e industrial. Eu cortava cana sem parar durante quatro horas, sem descanso. Alguém se encarregava de manter o facão afiado. Não deixei em nenhum dos meus dias de trabalho de produzir o mínimo de 3,4 toneladas ao dia. Depois, tomava banho, almoçava tranqüilamente e descansava em um local próximo. Ganhei muitas bonificações pela famosa safra de 70. Eu tinha acabado de completar 44 anos, então. O resto do tempo, até a hora de dormir, eu dedicava aos meus deveres revolucionários. Suspendi esse esforço pessoal quando sofri um ferimento em meu pé esquerdo. O afiado facão havia penetrado na bota protetora. A meta nacional era de dez milhões de toneladas de açúcar e quatro milhões de toneladas de melaço, aproximadamente, como subproduto. Ela nunca foi atingida, embora tenhamos nos aproximado.



A União Soviética não havia desaparecido, e parecia impossível que o fizesse. O período especial, que nos conduziu a uma luta pela sobrevivência e a desigualdades econômicas com os elementos inerentes de corrupção, ainda não havia surgido. O imperialismo acreditava que era hora de pôr fim à revolução. Também é honesto reconhecer que, nos anos benfazejos, aprendemos a desperdiçar, e o grau de idealismo e sonho que acompanhou nosso heróico processo não foi pequeno.



Os grandes rendimentos agrícolas dos Estados Unidos foram obtidos por meio de rotação de colheitas, alternando gramíneas como o milho, o trigo, a aveia e grãos semelhantes, e leguminosas como a soja, a alfafa, o feijão e outros. Estas últimas incorporam nitrogênio e matéria orgânica o solo. O rendimento da produção de milho nos Estados Unidos em 2005, de acordo com dados da Organização da Agricultura e Alimentos das Nações Unidas (FAO), atingiu as 9,3 toneladas por hectare.



No Brasil, a produtividade com esses mesmos grãos é de apenas três toneladas, em área comparável. A produção total contabilizada pelo país irmão foi naquele ano de 34,6 milhões de toneladas, integralmente consumidas como alimentos no mercado interno. O Brasil não exportou milho ao mercado mundial.



Os preços desse grão, alimento principal de diversos dos países da área, quase dobraram. O que acontecerá quando milhões de toneladas de milho forem dedicadas à produção de biocombustíveis? E não vou mencionar as quantidades de trigo, aveia, cevada, sorgo e outros cereais que os países industrializados utilizará como fonte de combustível para seus motores.



A isso devemos acrescentar que é muito difícil para o Brasil levar a cabo a rotação entre milho e leguminosas. Dos estados brasileiros que tradicionalmente produzem milho, oito respondem por 90% do total: Paraná, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. Por outro lado, 60% da produção de cana-de-açúcar, gramínea que não pode passar por rotação com outras safras, é realizada em quatro estados: São Paulo, Paraná, Pernambuco e Alagoas.



Os motores dos tratores, colheitadeiras e meios pesados de transporte necessários a mecanizar a colheita consumiriam combustíveis em quantidade crescente. O incremento da mecanização em nada ajudaria a evitar o aquecimento global, algo que está provado por especialistas que medem a temperatura mundial há mais de 150 anos.



O Brasil produz, sim, um alimento excelente, especialmente rico em proteína, a soja: 50,115 milhões de toneladas. O país consome quase 23 milhões de toneladas e exporta 27,3 milhões de toneladas. Por acaso alguma porção dessa soja vai se converter em biocombustível?



De imediato, os produtores de carne bovina começam a se queixar de que os terrenos usados como pasto começam a ser cultivados como canaviais.



Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura brasileiro e importante defensor da atual linha governamental, hoje co-presidente do Conselho Interamericano de Etanol, criado em 2006 com base em um acordo com o estado da Flórida e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com o objetivo de promover o uso do biocombustível no continente americano, declarou que o programa de mecanização da colheita da cana não geraria mais empregos, e pelo contrário: criaria um excedente de trabalhadores não qualificados.



Sabe-se que os trabalhadores mais pobres procedentes de diversos estados são aqueles que se envolvem no processo de corte da cana, movidos por imperiosa necessidade. Em certas ocasiões, trata-se de pessoas que precisam passar meses separadas de suas famílias. Era isso que ocorria em Cuba antes do triunfo da revolução, quando o corte da cana era feito a mão e apenas o cultivo e o transporte eram mecanizados. Ao desaparecer o brutal sistema imposto a nossa sociedade, os cortadores, que passaram por alfabetização em larga escala, abandonaram o trabalho migratório e, em poucos anos, foi necessário substituí-los por centenas de milhares de trabalhadores voluntários.



A isso deveríamos acrescentar o mais recente relatório das Nações Unidas sobre as alterações climáticas, o qual relata o que vai acontecer na América do Sul devido à água das geleiras e com a bacia aqüífera do Amazonas, à medida que a temperatura atmosférica se elevar.



Nada impede que o capital norte-americano e europeu financie a produção de biocombustíveis. O Brasil e outros países latino-americanos poderiam até receber verbas como presentes. Estados Unidos, Europa e outros países industrializados economizariam mais de US$ 140 bilhões ao ano, sem se preocupar com as conseqüências climáticas e a fome, as quais afetariam em primeiro lugar os países do Terceiro Mundo. Sempre restaria dinheiro para o biocombustível e para adquirir a qualquer preço os poucos alimentos que restariam disponíveis no mercado mundial.



O que é preciso de imediato é uma revolução energética que consistiria não só na substituição de todas as lâmpadas incandescentes mas também da reciclagem maciça de todos os eletrodomésticos, máquinas comerciais, industriais e de uso social de tecnologia obsoleta, que requerem dois ou três vezes mais energia.



É doloroso pensar que dez bilhões de toneladas de combustíveis fósseis são consumidas a cada ano, o que significa que a cada ano desperdiçamos aquilo que a natureza demorou um milhão de anos a criar. As indústrias nacionais têm uma tarefa enorme diante de si, e com isso poderiam elevar o nível de emprego. Dessa maneira, seria possível ganhar algum tempo.



Outro risco que o mundo corre, de caráter diferente, é o de uma recessão econômica nos Estados Unidos. Nos últimos dias, o dólar bateu recordes de perda de valor. Dessa moeda de papel e de títulos públicos norte-americanos estão constituídas as reservas cambiais da maioria dos países.



O dia 1º de Maio é um bom momento para levar essas reflexões aos trabalhadores e a todos os pobres do mundo, junto a um protesto contra algo incrível e humilhante: a libertação de um monstro do terrorismo, e exatamente no 46º aniversário da vitória revolucionária em Playa Girón.



Prisão para o verdugo!



Liberdade para os cinco heróis!



Fidel Castro Ruz
30 de maio de 2007.