Tempos de Pós Modernidade e a Utopia do Mal – Apontamentos iniciais!
Leia artigo do secretário de formação e propaganda do PCdoB-PI, professor Elton Arruda*:
Publicado 09/06/2007 16:50 | Editado 04/03/2020 17:02
Vivemos tempos de pós-modernidade. Isto significa em primeira dimensão a hegemonia do ideário neoliberal. Tal dádiva benevolente de valores se oferece ao deleite de todos, sem discriminação, como a desesperança feliz de um mundo que não muda [1], porque a história acabou. Os neoliberais ofertam generosamente também a crença de que as sociedades existem sem suas nações, e essas sem suas culturas próprias; num mundo onde a soberania dos povos não faz qualquer sentido. Dentro dessa lógica retiram a luta de classes como motor primeiro da história [2], pois agora não existiriam as classes sociais e sim um multiculturalismo [3], múltiplas identidades e civilizações [4]. A partir disso se explicaria que, mais que pulverizada, a sociedade global teria a sua causalidade e solução nos indivíduos e em suas ações isoladas (o vídeo de campanha de Al Gore “Uma Verdade Inconveniente” exemplifica a idéia). Tal constatação, mesmo que em muito resumida exposição, pode ser comprovada a partir da incomensurável e auto-explicativa escalada do individualismo (quase que como um atributo natural ao homem) e das diversas teorias do darwinismo social [5]. O mais grave de tudo isso, é que uma parcela dos setores avançados de pensamento progressista, sem má intenção, mas vitimados por “mega doses” de pós-modernidade, deixaram de viver o real (não percebendo o princípio ideológico dominante onde, ao tempo em que se domina, sabota-se sistematicamente seu opositor) e passaram a compor legiões imensas que pensam e agem [6] considerando uma utopia do mal.
Os setores avançados da sociedade não devem temer as utopias [7], mas entender que essas só fazem sentido quando existem sobre uma base real que possibilita a formulação de uma estratégia para alcançá-las. Assim vale lembrar, ainda que en passant,da experiência vivida entre os séculos XVIII e XIX, por inúmeros e valorosos estudiosos e ativistas políticos, de criar ilhas de prosperidade e justiça social dentro do capitalismo. Eles eram nutridos por duas forças coerentes com seu tempo. A primeira delas era o pouco conhecimento sobre os mecanismos de funcionamento do capitalismo, como forma de apropriação e relação da humanidade com seu espaço/ambiente. A outra força era a sensação de desconforto e assombro com os primeiros efeitos daquela nova forma de produzir e reproduzir espaço, que eram assustadores. As cidades sem saneamento, com jornadas de trabalho escorchantes, desnutrição, corrupção, pobreza, apavoravam e provocavam aqueles que tinham qualquer noção de solidariedade ou generosidade [8]. Era o capitalismo nascente, novo, esperando para ser desvendado. Mas como vencê-lo sem conhecê-lo? Com romper com o que não se entendia? A única resposta era que se faziam necessárias novas experiências [9]. Assim, por sonharem com um mundo melhor e não compreenderem o caminho para alcançá-lo, esses homens foram apelidados de Socialistas Utópicos.
Uns bons e destemidos amigos da crítica sadia e producente, (com o fundamento daqueles que realmente estudam!), conhecidos como Karl Marx e Friedrich Engels, avançaram sem preconceitos sobre a questão para superar as limitações dos Utópicos. Em conhecida publicação [10], eles anunciaram ao mundo o caminho político para que a luta social superasse o capitalismo e suas mazelas. Esses dois jovens revolucionários e muitos outros aprofundaram as reflexões e as denuncias sobre o capitalismo. Logo foi possível conhecê-lo, e, principalmente, desenvolver a estrutura teórica dinâmica e renovável para a Revolução Socialista.
Essa estrutura teórica teve suas experiências práticas (URSS e China são exemplos de diferentes aplicações e desenvolvimento dessa teoria) com mais êxitos e menos êxitos, a partir das condições reais de cada momento histórico e social. No Brasil essa luta (Revolucionária Socialista) viveu diferentes momentos, com avanços e retrocessos. Seu marco fundador é a construção do Partido Comunista do Brasil-PC do B. Mas, nosso país tem importantes personalidades que se dedicam a atualização justa dessa teoria e isso promove condições para que não seja a ideologia neoliberal a única alternativa de compreensão da realidade. E muito mais, para que não seja a perspectiva individualizante e despolitizada da sociedade sem classes, a única balizadora de uma saída para a superação do capitalismo.
Tais reflexões não são vãs conjecturas. Participam dos movimentos sociais (mesmo na vanguarda desses) [11], vários companheiros e companheiras que acreditam que a transformação do mundo é possível em pequenas ilhas. Negam a história do desenvolvimento das forças produtivas e colocam bandeiras pontuais como obstáculo entre a luta do povo e a conquista de uma vitoria mais radical.
Esses setores alimentam-se de uma utopia do mal, pois se comportam como se não estivesse desmascarado por completo o capitalismo e a luta revolucionária não tivesse viabilidade concreta. Logo, a eles cabe, dentro das trincheiras da esquerda (e às vezes no campo socialista!), pregar que se pode mudar o mundo sem discutir questões de caráter estratégico como: poder, desenvolvimento, globalização, avanços tecnológicos, propriedade, consciência e luta de classes entre outros. E tomam para si bandeiras pontuais sem compreender a dialética contida em seus aspectos estruturantes.
Para exemplificar convém, com respeito, instigar o debate. Senão vejamos: as transformações tecnológicas e o processo irreversível de globalização dos mercados mundiais não mudam o eixo tradicional da reforma agrária?[12]. Diante dos altos índices de produtividade, existe uma questão agrária por ser respondida no Brasil, mas essa pode ser tratada sem considerar a relação entre meio rural e meio urbano? A defesa intransigente de um modelo de sustentabilidade ambiental para a exploração dos recursos naturais, não camufla o fato que a preocupação central no capitalismo é a sustentabilidade do capital? Logo, não é utópico colocar a bandeira da sustentabilidade ambiental como centro de todas as lutas? São, ou não, de caráter conciliador de classes as idéias de que podemos ter o mundo ideal dentro do sistema capitalista? Quem ganha força quando os setores que se comprometem com uma ruptura radical param para defender ilhas de justiça e solidariedade, em detrimento da construção da união total do povo rumo a transformações revolucionárias?
O centro da questão é que nada deve ser posto como prioridade maior ao processo coerente (do ponto de vista histórico e social) de acumulação de forças rumo a transformação radical da sociedade. O resto é a utopia do mal [13] sustentada pelo aparelho ideológico do neoliberalismo.
Uma observação: Esses são somente apontamentos iniciais para uma crítica racional e fraterna aos democratas mais rebeldes. Para dar conseqüência a esse esforço, deverei apresentar nos próximo 40 dias outras considerações sobre o “Papel da Luta Pelo Desenvolvimento e a Tática dos Comunistas no Piauí”.
*Elton de Aquino Arruda, Professor, Dirigente Estadual do Partido Comunista do Brasil. Como contribuição para a reflexão coletiva sobre o papel dos comunistas e a luta pelo desenvolvimento do nosso Piauí.
NOTAS EXPLICATIVAS:
[1] O cientista político norte-americano Francis Fukuyama ainda defende, mesmo com certo acanhamento, a teoria do fim da história. Aposta na conformação de um mundo sem luta de classes onde o capitalismo venceu definitivamente o socialismo, logo será eterno. Sugiro a leitura de trechos de uma entrevista que ele concedeu, publicada na FOLHAONLINE (http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u29838.shtml) e uma bela publicação do Le Monde Diplomatique (http://diplo.uol.com.br/2006-09,a1395), tais leituras ajudam a entender o que está por traz de suas idéias.
[2] No Dicionário do Pensamento Marxista (por Tom Bottomore, da JZE) a definição de “luta de classes” aparece como a força motriz para o impulso da história, a responsável pela transformação constante da realidade social. Ela existe porque as classes são antagônicas por seus interesses e, portanto, jamais viveram em harmonia.
[3] Embora aqui não seja possível aprofundar reflexões sobre multiculturalismo, indico um texto do advogado Eduardo Bonfim que ajuda a começar um estudo sobre o tema http://www.vermelho.org.br/museu/principios/anteriores.asp?edicao=80&cod_not=626, pela revista Princípios.
[4] “Realpolitik” foi o nome que Samuel Hntington (porta voz intelectual do pentágono e da Casa Branca) deu para a postura de “acomodação” necessária diante dos conflitos atuais, pois os mesmos são inevitáveis diante de um mundo pluricivilizacional. Para compreendê-lo melhor sugiro umas olhadas no livro “Muitas Globalizações”, editado no Brasil pela Record em 2004. Esse ideólogo do neoliberalismo passa dias e noites formulando teorias para legitimar as práticas imperialistas das nações mais ricas.
[5] Aqui sugiro a visita ao artigo do Alexandre Luiz Alves de Oliveira que é especialista em Temas Filosóficos pela Universidade Federal de Minas Gerais (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4633) onde faz uma caracterização bem didática do que é darwinismo social, mas de já adianto: é uma teoria que admite como natural que umas pessoas vivam na mais absoluta desgraça, enquanto outros gozem sempre de boa sorte.
[6] O problema das pessoas que acreditam ser possível fazer do homem e de sua existência uma coisa melhor nos marcos do sistema capitalista é que elas vão agir assim, e isso as leva a uma luta momentânea, tópica, sem frutos para a luta transformadora.
[7] Não existe qualquer possibilidade da reflexão proposta nesses apontamentos ser recuada com relação aos sonhos. Só um tolo não gosta de sonhar… Todavia nem todos os sonhos são bons!
[8] Está valendo aqui, para ilustrar como era a vida dos trabalhadores naquela época, assistir um filme chamado Germinal (de Claude Berri, 1993), baseado no romance francês de Émile Édouard Charles Atoine Zola, Germinal (1881).
[9] Uns dos mais conhecidos Socialistas Utópicos eram Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837), Louis Blanc (1811-1882) e Robert Owen (1771-1858). Outros existiram, mas com menos destaque. Eles fizeram muitas coisas, desde escrever livros até fundar comunidades inteiras que funcionavam com valores morais diferentes dos do capitalismo da época. Essas experiências não se sustentaram (nem uma!).
[10] É claro que a publicação a que me refiro é o Manifesto do Partido Comunista de 1848, leitura indispensável com incalculável valor histórico que está disponível para download em http://www.vermelho.org.br/img/obras/manifesto_comunista.asp, mas não seria justo passar por esse debate sem citar a obra de Engels intitulada “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico” também disponível para baixar no http://www.vermelho.org.br/img/obras/cientifico.asp.
[11] Diz-se de vanguarda aqueles lutadores do povo que, alem de lutar por questões imediatas, são comprometidos com a superação revolucionaria do capitalismo.
[12] Aqui é indispensável a leitura do artigo de Ronald Freitas, na Revista Princípios número 33, onde trata da questão. Está disponível para baixar em http://www.vermelho.org.br/museu/principios/anteriores.asp?edicao=33&cod_not=832.
[13] insisto que se trata de uma “utopia do mal”, pois, alem de existir uma experiência rica de luta pelo socialismo (aproveito para sugerir a leitura de um rico material sobre o assunto, publicado no Jornal A Classe Operaria e disponível para baixar em http://www.vermelho.org.br/pcdob/secretarias/formacao/historia_do_socialismo.asp), colocar lutas menores e imediatas como barreiras a luta de caráter estratégico é fazer um mal a humanidade.