UFSC: Políticas afirmativas e as barreiras do conservadorismo
Artigo de André Luiz Vitral Costa, estudante da 7ª fase do curso de Administração e Representante Discente no Conselho Universitário da UFSC analisa a definição pelo Conselho Universitário, de cotas para negros e estudantes carentes no vestibular.
Publicado 10/07/2007 19:01 | Editado 04/03/2020 17:14
UFSC: Políticas afirmativas e as barreiras do conservadorismo
Por André Luiz Vitral Costa
Foi com grande felicidade que adentrei a sala dos conselhos da UFSC na manha desta terça feira. Há quase noventa anos após o Manifesto de Córdoba, a idéia da igualdade continua a ser uma idéia revolucionária. Não chega, portanto, a surpreender que somente no ano de 2007 a Universidade Federal de Santa Catarina, única pública federal em nosso estado discuta e aprove um sistema de ações afirmativas á alunos de escola pública e afro-descendentes.
Contudo, me surpreendi ao discutir princípios e os percentuais concretos com alguns colegas estudantes e alguns professores argumentos que tentam mistificar esta política no que tange a questão racial (que para dar certo deve ser encarada como política de estado e não de governo) ou que denotam um preconceito disfarçado de meritocracia. Assim vamos debatê-los:
“Cotas para negros equivalem a combater uma injustiça criando outra, pois o combate às diferenças socioeconômicas entre brancos e negros não pode levar à suspensão, ainda que temporária, do sistema de ingresso na universidade baseado no mérito do candidato.”
Iniciamos a discussão com a premissa que acúmulo de conhecimento não é igual a méroto. Ou seja,o que o vestibular atual mede, mais freqüentemente, é a qualidade do ensino que foi oferecido aos candidatos, e as condições de estudo e vida dos mesmos. Assim, o sistema de vestibular mede o mérito do sistema escolar e do sistema social, a desigualdade de oportunidades. Não por acaso, os estudantes dos cursos mais procurados (Medicina, Odontologia, Engenharias em geral) em sua grande maioria vieram de escolas privadas e das classes mais abastadas. Não creio que se considere que o mérito se distribui desigualmente como a riqueza, concentrando-se no topo da pirâmide social.
Todavia, se a preocupação de muitos é com a necessidade de manutenção de um processo competitivo, a política em discussão não elimina a competição. Ou seja, a proposta de cotas, ao reconhecer as profundas desigualdades de oportunidade, estabelece que a competição deve se dar entre candidatos com igualdade de condições, para que, de fato, se possa medir o mérito dos candidatos e não o mérito dos diferentes sistemas escolares. Não se pode dar uma tarrafa a um pescador e um barco pesqueiro a outro e dizer que o resultado pe derivado da habilidade de cada um.
“As políticas de ação afirmativa com cotas raciais esbarram em sérias dificuldades práticas. Como definir um negro no Brasil? O que impediria alguém de declarar-se negro para ter acesso às cotas?”
Este argumento, muito utilizado pela mídia racista e reacionária é respondido com uma palavra: a auto-definição. Entendemos que a identidade étnica é uma construção do próprio sujeito, imerso em relações socioculturais complexas. Desta maneira, se chegarmos a um dia em que ser negro neste país se transforme em objeto de disputa e desejo, será um grande passo andado para a dissolução dos obscuros mecanismos psicossociais que matem a raça negra no seu atual lugar de marginalidade e exclusão. Não obstante, se temem alguns uma debandada geral da condição de branco, inflacionando os concorrentes à cota de negros, pode-se prever um processo no qual se averigúe o pertencimento étnico racial daqueles que se identificarem enquanto negros e se apresentem ao processo de competição nesta categoria. Dessa forma, o próprio processo de inscrição, já se constituiria maravilhoso momento de reflexão acerca da identidade racial-étnica.
“O problema do racismo está associado à questão social. Além do mais, temos uma população mais miscigenada do que qualquer país. É difícil distinguir. Quem não tem ascendência negra? Por isso a política a ser feita é a da universalização do ensino”.
Reproduzindo censos comuns alguns decanos desta instituição não se percebem de dois fatos: o primeiro, é pensar que existe uma “questão social” à qual o racismo é derivado, como se o racismo não fosse uma das fundamentais questões sociais da sociedade brasileira. Entendo que a questão de raça está relacionada fundamentalmente com a questão de classe e que a superação da primeira elimina a necessidade da superação da última. O segundo fato é considerar que a miscigenação bate todos no liquidificador, levando como conseqüência à política da universalização. Me parece uma caricatura mal feita dos macacos dos sentidos. Os olhos e os ouvidos e bocas permanecem fechados, recusando-se a ver a cruel realidade dos dados do IBGE e do IPEA, que não somente conseguem distinguir quem é negro e quem não é neste país, como mais do que isso indicam as profundas desigualdades de oportunidades que o Brasil oferece aos seus cidadãos, com base no critério da raça.
Assim, me parece claro que os argumentos apresentados são apenas sintomas de algo mais: num primeiro momento, se teme que os negros ocupem indevidamente novos lugares e os brancos sejam injustiçados; num segundo momento, se teme o contrário, que brancos espertos se declarem negros e “engabelem”, concorrendo indevidamente a uma vaga mais “fácil”. Ou seja, estamos diante de ua reação típica do conservadorismo, de um temor que se alterem as regras do jogo e se desmorone este mundo cruel mas previsível, no qual já se pode saber de antemão o lugar de cada um pela simples inspeção da cor da sua pele.
Após cinco séculos de desigualdades baseadas nas diferenças de aparência e origem, o Brasil pode e deve ousar: promover a igualdade, oferecer a todos os filhos desse solo a possibilidade de que os seus talentos possam de fato desabrochar, colocando o Brasil em condições de competir internacionalmente pelo lugar que lhe cabe, pela sua grandeza, pela generosidade de um povo que resistiu à travessia do Atlântico e à escravidão e é capaz de realizar as mais profundas mudanças se uma oportunidade lhe for oferecida.
Por fim, no decorrer desta análise que esqueci de anunciar o resultado da reunião. O Conselho Universitário da UFSC decidiu reservar 20% das vagas, já a partir do próximo vestibular, para estudantes oriundos de escolas públicas e tímidos 10% para negros, também formados em colégios de caráter público. Cabe a sociedade catarinense divulgar e controlar o processo para que possamos aperfeiçoa-lo e ampliá-lo aos sonhados 50%.
André Luiz Vitral Costa é estudante da 7ª fase do curso de Administração e Representante Discente no Conselho Universitário da UFSC