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A crise imobiliária nos EUA afeta ou não o Brasil?

A crise atual tem de duplo e imbricado aspecto, atingindo tanto do mercado imobiliário dos Estados Unidos quanto de parte de seu mercado financeiro e de outras importantes praças financeiras da Europa e do Japão. Formou-se nos EUA uma gigantesca bolha imo

É certo que há uma desvinculação tendencial entre o capital produtivo e o rentismo ou o mercado de capitais, como se queira chamar. Esta tendência, segundo Lênin, aguça-se na época do imperialismo e, de uns 20 anos para hoje, exacerbou-se enormemente. No entanto, isto não quer dizer que não haja relação entre as esferas produtiva e financeira. O que acontece é que esta relação é cada vez mais distorcida. O crescimento de uma é aritmético e da outra é geométrico, em linguagem matemática primária.



Na situação concreta do capitalismo mundial, é forte e crescente a relação entre o mercado financeiro e mercado imobiliário – comércio de imóveis residenciais e comerciais –, ao qual pode ser acoplado todo o setor da indústria da construção civil. O mercado imobiliário, em várias partes do mundo, funciona como um refúgio relativamente seguro para aplicações do capital financeiro. É no mecanismo desta vinculação que aparece a crise, atingindo as duas pontas.



Crises do século 21 começaram por NY



Ela está centrada (mas não concentrada inteiramente) nos EUA, país de maior economia capitalista do planeta. É interessante notar que, após o ciclo de crises da periferia – principalmente México, Brasil, alguns países asiáticos, Rússia, Turquia e Argentina – neste início de século já duas crises atingiram o centro do capitalismo: a crise das chamadas pontocom, em 2001, e a atual, ambas manifestando-se inicialmente na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE), mas com raízes mais profundas.



A periferia, como temos dito, passa por um momento relativamente bom do ponto de vista da economia. Em termos médios: reservas crescentes em moedas fortes, baixa inflação, PIB em elevação significativa, vulnerabilidade externa relativamente menor, fortalecimento das posições energéticas etc. Principalmente na Ásia, mas também na América Latina e na África.



O papel da ''liquidez excedente”



A crise aparece num momento econômico mundial de crescimento real e de um mercado financeiro exuberante, de grande liquidez. Como todas as crises do capitalismo – quer produtivas, comerciais, financeiras ou cambiais – esta sucede um momento de bonança. Exatamente por isso, foge às previsões e tem levado as agências de classificação de risco à desmoralização.



Lanço mão das palavras do professor da PUC-Rio, colaborador da Casa das Garças e até recentemente diretor do BC do Brasil, Ilan Goldfajn:  “A liquidez também tem sido elevada … de um lado, um alto déficit em conta  corrente nos EUA; do outro, superávits elevados na Ásia (e nas economias emergentes em geral) e nos países petrolíferos. Esses superávits têm sido aplicados nos ativos financeiros no mundo. Muitos desses recursos foram aplicados (ou, posteriormente, realocados) em ativos mais arriscados. Essa liquidez excedente gerou mercados otimistas e ativos que continuamente se valorizam. No mercado de crédito isso significou juros cada vez mais baixos, para todos os tipos de empréstimos. Em alguns casos, como o mercado de hipotecas, a queda dos juros atingiu empréstimos para devedores de menor reputação e capacidade de pagar.” 



As palavras do conservador Goldfajn são interessantes porque argumentam com a “liquidez excedente” proveniente da dinâmica concreta do capitalismo financeirizado, ou seja, das relações dos EUA com a China e com a Ásia em geral. Mostram onde o esquema de acumulação atual é primeiramente afetado. Ele é lúcido, quando fala das causas do fenômeno.



O peso dos imóveis na economia dos EUA



O presente modelo de acumulação capitalista é fortemente protagonizado pelo mercado financeiro dos EUA, de longe o maior e mais diversificado do mundo. O tão decantado crescimento conseguido pelos EUA durante a década de 90 e neste início de século tem sido baseado principalmente no consumo e no endividamento público e privado, sempre com forte intermediação financeira. O consumo responde por mais de dois terços do PIB dos EUA.



Este é o caso típico do mercado imobiliário norte-americano, que tem um peso destacado na economia daquele país. Todo o processo de construção e venda de imóveis é financiado das mais diversas formas pelo mercado financeiro. O sistema de financiamento imobiliário norte-americano é complexo e sofisticado. É composto por bancos hipotecários, instituições de poupança (S&L) e outras instituições e agências públicas e privadas conhecidas pelas sugestivas siglas FHA, Ginnie Mae, Fannie Mae e Freddie Mac, algumas delas com ações negociadas em Bolsa.



A escalada do crédito de alto risco



Em medida crescente o financiamento tem sua contrapartida (garantia) nas hipotecas dos imóveis. O mercado de hipotecas corresponde a 34% do total das vendas de residências e 29% do mercado de imóveis comerciais. Nas circunstâncias recentes de fartura de crédito, prevaleceram três linhas de empréstimos: primeira linha, alternative-A (pessoas sem comprovação de renda) e subprime (alto risco). Muitos empréstimos foram tomados a taxas de juros variáveis. Como explicam Cintra e Cagnin, “com a expansão do crédito hipotecário e a maior liquidez do mercado secundário de MBS [hipotecas securitizadas], os grandes bancos comerciais privados também se constituíram em importantes securitizadores de hipotecas.”



A concorrência entre agentes financiadores fez crescer a porcentagem do crédito subprime que chegou a 30% das hipotecas em 2006 quando eram de 6% em 2002. Os alternative-A chegaram a 13% do total das hipotecas também em 2006.



Na dinâmica concreta do ciclo do crédito, segundo Cintra e Cagnin: “os empréstimos para compra de residências são agregados e repassados para um conjunto de investidores (fundos de investimentos, fundos de pensão, [os privilegiados e perniciosos] hedge funds , bancos universais etc.), que compram títulos com determinada rentabilidade, cuja garantia colateral é o pagamento das prestações imobiliárias (e no próprio limite o próprio imóvel), e que podem ser negociados no mercado secundário.”



Ingredientes de superprodução de imóveis



Assim, formou-se nos EUA uma gigantesca bolha imobiliária, com todos os ingredientes de uma superprodução de imóveis.



A valorização dos imóveis residenciais chegou a 60% de 2001 a 2006, quase 10% ao ano. O crédito fácil – para até 100% do valor dos imóveis em até 40 anos – fez com que as famílias de endividassem pesadamente e o sistema financeiro retirasse daí alta taxa de lucratividade. Cintra e Cagnin constatam que “entre 2000 e o primeiro trimestre de 2007, o conjunto dos imóveis detidos pelas famílias americanas saltou de US$ 11 trilhões para 20,7 trilhões, uma expansão de 82%. No mesmo período, o estoque de hipotecas detidas pelas famílias pulou de US$ 4,8 trilhões para US$ 9,8 trilhões, um crescimento de 104%. A euforia se espalhou amplamente, em meio a uma febril atividade especulativa.



Em 2006, o primeiro sinal da crise



Em meados do ano passado foram dados os primeiros sinais de problemas no mercado imobiliário norte-americano. No final de julho de 2007 houve um agravamento das dificuldades e a conformação de um quadro típico de crise – apelidado de estouro da bolha – e não um simples ajuste como alguns querem fazer crer. Crise que vem do aumento da inadimplência das hipotecas, ou seja, compromissos não cumpridos por parte dos compradores de imóveis, o que tem como efeito sobre os credores financeiros.



Alguns acumulam prejuízos, assistem à queda nos preços de suas ações, influenciada, entre outras coisas, pelo fato de algumas não poderem garantir direito de saque dos investidores. Outros vão à falência, fazendo aumentar a desconfiança geral. A dimensão do fenômeno pode ser medida pelas dificuldades por que passam, entre outros, o BNP Paribas, o maior banco da França, ou a Countrywide, maior financiadora imobiliária dos EUA.



O ciclo prossegue com menos investimentos nas construções, menos vendas de imóveis novos e usados, queda no ritmo de valorização dos imóveis, ou seja, mesmo com uma possível opção venda, o “mutuário” não conseguiria pagá-lo. A desconfiança se generaliza. Falando em termos mais precisos, instalou-se uma crise de superprodução de imóveis, advinda dos superinvestimentos – possíveis com o crédito barato devido à alta liquidez –gananciosos de lucros. Crise que se manifesta diante da queda da taxa média de lucro do setor e da diminuição da demanda solvente do mercado consumidor.



Mas por que há aumento da inadimplência?



a) Depois de sucessivas reduções a partir de 2001, em 2003 a taxa de juros básica nos EUA chegou a menos de 1%. Mas, como o Federal Reserve detectou pressões inflacionárias a partir daquele ano, a orientação monetarista por ele adotada fez com que a taxa básica voltasse a subir, chegando atualmente a 5,25%. Em conseqüência, apenas de 2005 a 2006 a taxa média de juros para as hipotecas de trinta anos elevou-se 9,4%.



b) Além do crédito mais caro, o crescimento do endividamento das famílias norte-americanas elevou-se muito mais rapidamente do que sua renda, a qual expandiu-se de US$ 7,2 trilhões para US$ 9,9 trilhões, correspondentes a 37,6%, entre 2000 e o primeiro trimestre de 2007.



c) O ritmo diferenciado entre expansão da renda e expansão do endividamento pode estar sendo influenciado pelo achatamento da renda que vem se dando nas camadas médias assalariadas dos EUA.



As perguntas do momento



A crise fica restrita ao mercado imobiliário e ao setor do mercado financeiro a ele ligado nos EUA? Mais ainda: a crise fica nos EUA? Qual sua profundidade, extensão e duração? Em que medida o Brasil será afetado? Estas são as principais perguntas do momento, sobre as quais ninguém arrisca opiniões muito peremptórias.



Para entrar neste terreno é preciso, antes de mais nada, constatar que os mecanismos e instrumentos anti-crise que eram utilizados pela oligarquia financeira do período do capitalismo regulado são bastante diferentes dos mecanismos e instrumentos da atual etapa neoliberal, de capitalismo financeirizado, globalizado. Agora, para enfrentar as crises financeiras, os bancos centrais jogam o papel central como emprestadores de última instância. O capitalismo é neoliberal, de mercado, até que a crise seja desencadeada; mas o capitalismo é estatal quando trata de aplicar os mecanismos anti-crise. Em uma semana, do dia 9 ao dia 15 do corrente mês, o Banco Central Europeu já havia injetado mais de US$ 200 bilhões na economia européia, o FED americano cerca de US$ 71 bilhões no mercado norte-americano e o Banco Central do Japão também alocou alguns bilhões de dólares para garantir a liquidez do seu sistema financeiro.



O crescimento real nos EUA será tanto mais afetado quanto mais a crise se espalhar pelo segmento do consumo. Isto pode se dar a curto prazo. A WalMart, grande rede de comércio varejista, começou a anunciar dificuldades. A indústria da construção civil conecta-se fortemente com outros setores industriais e seus problemas poderão se espalhar. Os altos preços do petróleo – que os EUA importam em enorme volume – continuam a exercer pressão sobre a inflação. Pode-se dizer assim, que crescem as possibilidades de uma recessão. Na Europa os resultados de crescimento do segundo trimestre (Alemanha e França) são bem menores que os do primeiro trimestre e menores do que o esperado. No entanto, isto parece não ter relação direta com a crise americana. Uma recessão nos EUA poderia ter repercussões sobre a economia chinesa dado ao nível de parceria entre as duas economias.



O mercado financeiro mundial é verdadeiramente integrado ou mundializado. De uma maneira geral as principais Bolsas de Valores do mundo central e periférico têm operado em baixa. Cresce a aversão ao risco, os investidores procuram portos mais seguros e, muitas vezes, abandonam os mercados de capitais dos países emergentes.
Não se deve pensar em débâcle do sistema. As crises financeiras passam, como dizem com razão os mais ponderados. Os prejuízos, quebras, falências, são ajustes inevitáveis. Os atuais mecanismos de intervenção de um conjunto de bancos centrais, cujo montante no caso atual já se aproxima dos US$ 500 bilhões, têm se mostrado eficazes. Ao fim e ao cabo trata-se de preservar o status dominante da oligarquia financeira internacional, em primeiro lugar a dos Estados Unidos.



Mas, é bom insistir, de onde sai o dinheiro desta ajuda fabulosa? Quem paga pela crise? A crise é capitalista, mas sua solução se dá com recursos públicos, essa é a verdade. Ademais, não se pode esquecer que todo o noticiário da grande imprensa é fortemente ideologizado. Há uma espécie de censura auto-imposta pelos monopólios midiáticos quanto à gravidade do quadro. Os fatos reais só vêm à tona depois dos acontecimentos, tal qual na guerra de agressão contra o Iraque.



Reorientação macroeconômica no Brasil?



Quanto ao Brasil há indicadores favoráveis. Por enquanto espera-se para este ano que o crescimento do PIB fique entre 4% e 5%, que os investimentos estrangeiros diretos (IED) alcancem US$ 27 bilhões, que a balança comercial tenha superávit maior que US$ 40 bilhões. Há cerca de US$ 160 bilhões de reservas internacionais o que significa menor dependência de crédito externo. Porém, seria ingenuidade pensar que a crise atual não nos afetaria. Possivelmente o país não poderá mais contar com as condições externas tão favoráveis que prevaleceram desde o início do governo Lula. Quanto mais durar a crise nos EUA, evoluindo para um quadro de recessão norte-americana, tanto pior.



Hoje, ninguém mais imagina que os juros continuarão caindo mesmo na  reduzida velocidade com que vinham até aqui. Os capitais especulativos, de curto prazo, estão promovendo a esperada fuga de dólares. O dólar se valoriza e a classificação do país como investment grade é adiada. A Bovespa em 15 de agosto teve a quinta queda diária consecutiva, totalizando perdas de 20% em cima dos ganhos de 30% que havia conseguido no ano.



As crises representam sempre um momento fecundo para que se reflita sobre suas causas e suas lições, depois que se encerram. Porém, quando estão em curso, exigem argúcia para que, levando em conta as tendências objetivas, se possa prever desdobramentos possíveis e agir a tempo. Para o governo Lula isto poderia se configurar numa reorientação nítida de sua política macroeconômica – particularmente a política de juros, de câmbio, fiscal (superávits) e de entrada e saída de capitais –, livrando-a da perniciosa submissão ao capital financeiro para subordiná-la aos tão desejados interesses do desenvolvimento soberano, democrático, robusto e sustentado do país, aos anseios legítimos de melhores dias para o povo brasileiro.



* Dilermando Toni é jornalista e membro do Comitê Central do PCdoB; intertítulos do Vermelho