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Artigo de historiadora da USP revela a juventude de Vargas

Leia a primeira parte do artigo exclusivo para o Vermelho de Angélica Müller, doutoranda em História Social da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenadora-técnica do Projeto Memória do Movimento Estudantil, sobre o projeto do primeiro

Introdução


 


Aproveitando o mote dos 70 anos, em que muito está se falando da UNE, este pode ser um bom momento para ampliarmos e aprofundarmos o nosso conhecimento sobre sua história, aproveitando também para distorcer erros crassos que se perpetuam através daqueles que se propõem a contar o histórico da entidade.


 


O presente artigo, dividido em duas partes, é fruto de uma pesquisa de mais de dois anos que redundou em minha dissertação de mestrado em história política sob o título “Entre o estado e a sociedade: a política de juventude de Vargas e a fundação e atuação da UNE durante o Estado Novo, defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2005”.


 


Esta primeira parte será dedicada a explanar a tentativa do governo em implementar uma política para juventude durante o Estado Novo. A segunda parte centrará no momento em que a Juventude Brasileira entra em contato direto com a UNE.


 


Um encontro na diversidade:
Juventude Brasileira versus UNE


 


Por Angélica Müller*


 


Uma das principais bases do regime de Getúlio Vargas estava centrada no seu conteúdo político-ideológico. Dentre os vários matizes ideológicos que estiveram presentes no arcabouço teórico do período em questão, muitos chegaram a contrastar. Para tanto, basta citarmos, como exemplo, a “tradição cultural” de Almir de Andrade e a “modernização como justificativa para o reforçamento da autoridade do Estado” de Azevedo de Amaral (1).


 


Dentre os vários colaboradores e intelectuais do Estado Novo também podemos citar Francisco Campos. Suas linhas estavam traçadas no livro, O Estado Nacional: sua estrutura seu conteúdo ideológico, inspirado nos escritos de Mihail Manoilesco, expoente na literatura clássica da ciência política crítica ao liberalismo. Além do trabalho citado, Campos procura buscar uma “justificação simbólica” em Olavo Bilac, homem que no início do século 20 defendeu o fortalecimento do exército brasileiro, entendido como instituição representante da nação.


 


No projeto de construção deste Estado, a questão da soberania nacional tinha por instrumento de preparação civil a educação. Nesse sentido, existia um destaque para a juventude e sua formação: “Ao Estado caberia a responsabilidade de tutelar a juventude, moldando seu pensamento, ajustando-a ao novo ambiente político” (2). 


 


Juventude, uma ameaça


 


O que se buscava, conforme Helena Bomeny, era o “meio-termo” nos moldes educacionais entre a experiência liberal e a fascista. Assim, num primeiro momento, preferiu-se a “militarização”.


 


“Se de um lado evita o individualismo pernicioso criado e procriado no liberalismo, de outro controla os possíveis excessos e as possíveis ameaças que um projeto de mobilização política da juventude poderia gerar” (3). 


 


Não por acaso, a proposta inicial do projeto de “Organização Nacional da Juventude” foi elaborada dentro do Ministério da Justiça, chefiado por Francisco Campos. Neste primeiro momento, não se faz menção de colaboração externa, nem mesmo do Ministério da Educação e Saúde, órgão que seria mais apropriado estar ligado à elaboração e execução do projeto.


 


Conforme Bomeny, essa lacuna explicitava o teor político-ideológico que foi impresso ao projeto como sendo fundamentalmente de mobilização político-miliciana da juventude no Estado Novo, sob a direção e a orientação exclusivas e diretas do Presidente da República, Ministro da Guerra, da Justiça e da Marinha (4).


 


1º Projeto para juventude


 


O documento, elaborado em março de 1938, estava composto de um decreto-lei e de um projeto de regulamento técnico-disciplinar, esse bem mais extenso, contendo toda a estrutura e finalidade da Organização que seria administrada por um Conselho Nacional, chefiado pelo Ministro da Justiça.


 


O artigo quinze do decreto-lei apresenta: “A Organização Nacional da Juventude realizará seus objetivos pela arregimentação de toda juventude brasileira, compreendida entre os 8 e 18 anos de idade, em formações que se destinam a prepará-la física, moral e espiritualmente para a ação adequada aos fins e às normas que passam a reger os impulsos da nova vida brasileira (5).


 


Organizar a juventude, para prepará-la e “qualificá-la”, para a nova realidade do País parece ser o principal objetivo do Projeto neste primeiro momento.


 


Críticas


 


Muitas foram as críticas realizadas em cima deste projeto apresentado. Para o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, o projeto atende, naquele momento, a uma necessidade de ordem cívica, política e social, mas que não se ajusta à realidade brasileira.


 


Corroborando a idéia, o ministro da Educação, Gustavo Capanema argumenta que a Organização, da maneira que foi traçada, torna-se um aparelho desligado da escola e, a seu ver, para melhor funcionamento do projeto, o mesmo deveria estar vinculado ao Ministério, com suas devidas alterações. 


 


As críticas tornaram-se vigentes e, a partir daquele momento, uma nova estrutura e um novo projeto começaram a ser elaborados. Alguns órgãos analisaram o Projeto e enviaram seus pareceres ao Presidente da República. Em 02 de março de 1940 era aprovado o decreto-lei n.º 2.072 que instituía a Juventude Brasileira.


 


Juventude Brasileira


 


Várias foram as discussões visando a elaboração de um novo projeto voltado à juventude. Acabou prevalecendo as idéias do Ministro da Educação e Saúde. Entre outras questões, a Juventude Brasileira passou a ter por finalidade principal o culto constante à Pátria:


 


“Despertando veneração pelos seus grandes mortos e entusiasmo pelos seus grandes feitos; despertando o amor para com os ideais e interesse com os problemas nacionais e suscitando a prática das virtudes patrióticas” (6).


 


Bomeny destaca que, esvaziada das pretensões iniciais, a Juventude Brasileira se limitaria ao culto mais ou menos ritualístico das grandes datas nacionais, sem que ninguém por ela realmente se interessasse e tratasse de dar-lhe impulso. (7)


 


Influência dos EUA


 


As sucessivas mudanças e as descontinuidades das questões encaminhadas mostram, se não o descaso, a não prioridade de levar, de fato, uma política voltada para a juventude. Da mesma maneira que Maria Antonieta Leopoldi (8) sustenta a idéia que não existiu um projeto varguista de desenvolvimento econômico, que serviria de base para seu governo, o mesmo parece se apresentar no caso da juventude.


 


Um dos principais fatores que precisamos levar em conta para sustentação dessa tese é o próprio contexto político internacional, que acaba por definir, em muitos casos, a política interna. Devemos lembrar que este é o período em que o Brasil já se aproximava dos Estados Unidos. Portanto, as características iniciais do Projeto, que se inspiravam nos modelos empregados pelos regimes português, italiano e alemão, de modo algum poderiam ser as mesmas.


 


Esta aproximação com a política americana previa também uma abertura democrática maior. Sendo assim, o projeto para juventude não poderia estar baseado, em sua grande parte, em modelos autoritários de arregimentação.


 


O mito da juventude


 


Assim, realmente só restava à Juventude Brasileira o “culto e o amor à Pátria”. Para colocar em prática o projeto da Juventude, Vargas, através de decreto-lei 5.045 de 5 de dezembro de 1942, cria a Direção Nacional da Juventude Brasileira.


 


No arquivo Capanema não existem referências se esse projeto foi colocado em prática, assim como inúmeros outros propostos. A realidade da Juventude Brasileira, no pouco tempo em que existiu, não passou de grandes atos cívicos em comemoração à Pátria e, principalmente, em louvor à figura do presidente Getúlio Vargas.


 


Tanto que, depois das diversas reflexões sobre a data de comemoração da juventude e seu “uso”, foi aclamado o dia 19 de abril, aniversário de Getúlio Vargas, o grande chefe da nação, como a data a ser comemorada. Através da comemoração, o mito (9), externado na figura de Vargas e suas ações, tornam-se cada vez mais presentes na sociedade.


 


Terreno 132


 


Em 17 de dezembro de 1942, Capanema recebe um documento do diretor do departamento de administração, Bittencourt de Sá, relatando que a manutenção do edifício da Praia do Flamengo 132 gerava um encargo de responsabilidade à Divisão de Obras, sendo que, aquele prédio estava destinado a servir de sede para entidades estudantis e não repartições do Ministério.


 


O ofício de Bittencourt Sá expunha que estavam destacados um engenheiro e quatro zeladores da divisão de obras do MES “trabalhando exclusivamente em proveito de entidades apenas oficiosas, quando a existência destas justificaria a concessão de auxílios, para que mantivessem o prédio em funcionamento, sem interferência do Ministério.” (10)


 


Ainda mostrava que, desde a expedição do decreto-lei 5045, já citado anteriormente, existia a pretensão de instalar a Juventude Brasileira na sede do extinto Clube Germânia. Outro ponto apresentado foi referente à cessão definitiva daquele edifício ao MES, que ainda não se tinha verificado. Hélio de Almeida relembra que o prédio não era da União Nacional dos Estudantes, mas que, na época da ocupação, o Ministro assinou uma portaria cedendo à UNE o edifício da Praia do Flamengo 132. (11)


 


Diante do exposto, Bitencourt Sá propunha a instalação da Juventude Brasileira no edifício e que seu secretário geral “fique autorizado a permitir que continuem sediadas no edifício as entidades de estudantes, enquanto as dependências não se tornarem necessárias à Juventude Brasileira”. No dia seguinte, Capanema despacha o pedido estando de acordo, mas passando à consideração do Presidente da República que em 29 de dezembro aprova o pedido.


 


(continua 2ª parte)


 


* Angélica Müller é doutoranda em História Social da Universidade de São Paulo. Coordenadora-técnica do Projeto Memória do Movimento Estudantil.


 


Notas:


 


(1) Para saber mais sobre o pensamento destes dois autores e do conteúdo político-ideológico do Estado Novo, ver: OLIVEIRA, Lucia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Ângela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.


(2) SCHWARTZMAN, Simon. BOMENY, Helena M. B. & COSTA, Vanda M. R. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra/ São Paulo: EDUSP, 1984. p.83.


(3) BOMENY, Helena M. B. Três decretos e um ministério: a propósito da educação no Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce C. (org.) Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. p. 144.


(4) BOMENY, Helena M. Organização Nacional da Juventude: a política de mobilização da Juventude do Estado Novo (documento de trabalho). Sem data, p. 14.


(5) Arquivo GC 38.08.09 série g, r:51 fot 791. CPDOC/ FGV


(6) Arquivo GC 38.08.09 série g, r:52 fot 322. CPDOC/ FGV


(7) BOMENY, Helena. In: PANDOLFI. Op. cit.  p.150.


(8) LEOPOLDI, Maria Antonieta P. A economia política do primeiro governo Vargas (1930-1945): A política econômica em tempos de turbulência. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de A. Neves. O Brasil Republicano: o tempo do nacional-estatismo. Vol. 2.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 248.


(9) A questão mítica, abordada na dissertação esteve baseada principalmente, nos escritos de Raoul Girardet. Conforme Girardet, o mito político “é instrumento de reconquista de uma identidade comprometida”. O mito serve para dar legitimidade e racionalidade ao passado, e ainda é um mecanismo de interpretação da realidade, “chave de explicação” para o período. O mito político, dessa maneira, pode aparecer como uma “espécie de revelador ideológico”, por ser justamente “reconhecido socialmente e percebido subjetivamente”, o que torna seu uso um instrumento de legitimação. In: GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.


(10) Arquivo GC 38.04.18 r: 50 fot. 598. CPDOC/ FGV.


(11) BARCELLOS. Op. Cit. p.22.