Reforma da Previdência é baseada em falsidades, diz auditora
Olhada sob um prisma eminentemente técnico, a discussão sobre a necessidade ou não de uma nova reforma da Previdência demonstra vício já na própria origem, por partir de falsa premissa. Tema que somente ganhou a conotação de controvérsia em decorrência
Publicado 04/09/2007 20:46
Os números são muito evidentes, e somente não os vê quem não quer. Desde 2004, o crescimento da arrecadação líquida é superior ao crescimento das despesas com benefícios pagos pelo INSS, desconsiderando-se os pagamentos de atrasados judiciais. Essa era mais uma distorção para fazer surgir o déficit. As despesas judiciais representam valores atrasados, relativos a diversos exercícios, não fazendo sentido incorporá-las às despesas do exercício. É tragicamente cômico, por exemplo, que no cálculo da inflação queira se considerar questões como os efeitos sazonais, e no caso de um sistema como o previdenciário, de conotação eminentemente social, se ignorem variantes dessa natureza, que distorcem tecnicamente os resultados.
Da mesma forma, inverte-se a realidade para – traiçoeiramente – enxovalhar a imagem da Previdência Social. É voz comum afirmar-se que a economia vai mal porque a Previdência vai mal, quando a realidade é absolutamente inversa: se a economia vai bem, a Previdência terá bons resultados. Evidentemente, a correta gestão é indispensável para que os bons fluidos da economia se reflitam na Previdência, mas desejar que, com um mercado de trabalho altamente perverso e com desequilíbrios forjados a partir, por exemplo, de uma gigantesca concentração de renda, a Previdência apresente resultados de país desenvolvido, é a primeira forma de impor obstáculos intransponíveis às ações que inapelavelmente precisam ser adotadas.
Vale lembrar que, reforçando o que acabou de ser dito, constata-se que desde o começo dos anos 90, com a desestruturação do mercado de trabalho – queda do emprego e da renda – os resultados da previdência foram piorando a cada ano. Até o início do Plano Real havia sobra de caixa. Mas depois de 1995, o resultado negativo foi cada vez maior. Já em 2006, pela primeira vez desde o Plano Real, as receitas vinculadas à previdência social cresceram num ritmo mais acelerado do que o das despesas, fazendo com a que necessidade de aporte de outros recursos da Seguridade caísse em valores relativos ao PIB.
A melhoria na arrecadação, como não poderia deixar de ser, ocorre quando esse quadro se inverte. Nos últimos dois anos, nas regiões metropolitanas, os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego do IBGE demonstram uma queda no mercado informal de trabalho, com redução, tanto no quantitativo de trabalhadores empregados sem carteira, quanto nos ocupados por conta própria. Outro ponto importante para a melhoria da arrecadação foi a ampliação do mercado de trabalho fora das regiões metropolitanas. Esse dado pode ser percebido pelas informações do IBGE, contidas na PNAD, e pelos registros do CAGED, informados pelo Ministério do Trabalho.
Sob esse mesmo prisma, a tendência de melhoria das contas da previdência social é reforçada pelos dados parciais de 2007. No acumulado do primeiro bimestre, a arrecadação líquida aumentou 13,6%, contra uma variação de 6,4% nas despesas com benefícios. Os efeitos poderão ser ainda mais positivos se a economia apresentar os resultados pretendidos pelo PAC. Em resumo: se a economia for bem, a Previdência seguirá o mesmo caminho.
Quando se afirma que a compreensão da inexistência do déficit se torna mais clara a partir do reconhecimento de que os constituintes de 1988 se preocuparam com a sustentação econômica da Seguridade Social, o que se pretende é levar à sociedade a compreensão de que as contas somente irão fechar quando efetivamente as regras constitucionais forem rigorosamente obedecidas.
Ao longo de 2006, o Ministério da Previdência passou a adotar variações para a apresentação dos grandes números do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Primeiro, foi o reconhecimento de que uma parcela da CPMF estava constitucionalmente vinculada ao financiamento do RGPS. Em seguida, acrescentou-se o cômputo das renúncias. Incorporá-las é uma forma de isentar os segurados da responsabilidade pela diminuição das receitas determinada por opções das políticas tributárias.
Há quem defenda a pura e simples eliminação de qualquer renúncia fiscal. Caso isso não ocorra, ou seja, caso se conclua que a instituição de uma determinada renúncia ou de um regime especial de contribuição é importante para a sociedade e atende ao interesse público, é forçoso, em contrapartida, reconhecer que esse custo social deve ser repartido pelo conjunto da sociedade. E nesse caso a única alternativa é debitar do Tesouro esse custo, e não da Previdência, como vem sendo insistentemente alardeado, do que resultam as distorções que os pretensos analistas da questão previdenciária querem impor na tentativa de justificar cortes ainda maiores de benefícios e de direitos.
Se há renúncia fiscal, cabe ao Estado cobrir essa parcela de receitas que foi suprimida, ou seja: a sociedade tem que reconhecer como legítimo esse custo, do ponto de vista social, o que o descaracteriza como “déficit” da Previdência. Essa atitude perversa em relação à Previdência se verifica também quando são ignorados os desvios de receita feitos pelo governo, cujos rombos acabam sendo enganosamente atribuídos ao sistema de Seguridade Social. É o caso óbvio da DRU, que, embora tenha amparo legal, desvincula 20% das receitas de impostos e contribuições da União para outras finalidades.
Novamente o conceito de déficit agride a lógica que prevaleceu na iniciativa dos constituintes de 88 ao definir recursos para a sustentação financeira da Seguridade Social, uma vez que os recursos constitucionalmente criados para financiar a Seguridade são desviados com o propósito de facilitar a produção de superávits primários. Apesar disso, propaga-se o discurso destinado a impingir à opinião pública a idéia de que a previdência é inviável, tanto econômica como socialmente, e que a questão pode ser resolvida por meio da previdência privada. O objetivo claro é tentar justificar reformas previdenciárias e retirar do Estado a responsabilidade de assumir despesas na área social, particularmente na Seguridade.
Questões como essas, caso não sejam levadas em conta, transformarão o trabalho do Fórum Nacional numa grande farsa, destinada tão-somente a dar prosseguimento às mesmas distorções produzidas por todas as reformas realizadas até agora, que, baseadas em falsas premissas, resultam igualmente em falsas soluções, decorrendo disso a perpetuação de problemas que consistem em subtrair cada vez mais direitos e amesquinhar benefícios, numa atitude de lesa-pátria que agride os que são dotados de um mínimo que seja de consciência social e de dignidade cívica.
Assunta Di Dea Bergamasco é presidente da ANFIP – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil.
Fonte: Site do Diap