Livro narra a luta dos camponeses de Trombas e Formoso
O professor da UNESP Paulo Cunha acaba de lançar o livro Aconteceu longe demais – A luta pela terra dos posseiros de Formoso e Trombas e a Revolução Brasileira (Ed. UNESP). Seu tema é um dos principais conflitos armados no campo brasileiro,
Publicado 17/09/2007 15:41
Muitos acreditam que a luta no campo no Brasil contemporâneo começou com as Ligas Camponesas no final da década de 1950 ou mesmo com o MST. É praticamente desconhecida a rica tradição das lutas camponesas dirigidas pelo Partido Comunista. Os maiores exemplos desses movimentos contestatórios foram as lutas ocorridas em Porecatu no Paraná e em Trombas e Formoso, estado de Goiás. Além desses existiram dezenas de outros movimentos menores que foram esquecidos. Paulo Cunha vem dando sua contribuição neste processo de reconstruir a história dos “sem-história”.
Vermelho: Como a historiografia marxista tem encarado as lutas camponesas através da história?
Paulo Cunha: Em geral, poucos reconhecem a sua importância e a contribuição dada por elas ao longo da história. Salvo reflexões pontuais, estas lutas são muito secundarizadas face ao movimento operário, esquecendo-se muitas vezes o papel que a intervenção do campesinato desempenhou em muitas das revoluções do século 20, sendo que algumas delas foram de fato revoluções camponesas. Hoje em dia, há muitos intelectuais que procuram sustentar que esta fase está superada. O que é um equívoco; embora tenhamos que reavaliar os pressupostos da teoria da revolução e o papel das lutas camponesas nesta nova agenda.
Vermelho: No Brasil as coisas foram diferentes? Na nossa historiografia onde se localizam os conflitos protagonizados pelos camponeses?
Paulo Cunha: Uma dessas linhas, muito corrente, procurou desqualificar a intervenção dos comunistas como indutores dessas lutas, reduzindo a atuação de seus militantes e do Partido a uma intervenção desmobilizadora, um absurdo completo. Somente em anos recentes pudemos contar com estudos sobre algumas destas intervenções, mas ainda há muito que ser feito. No passado, valorizou-se sobremaneira as Ligas e mais recentemente percebe-se uma tendência maior em se pesquisar o MST, excluindo completamente as lutas que precederam esses movimentos.
Nunca me esqueço de uma das figuras mais importantes daquela geração, Geraldo Tibúrcio, primeiro presidente da Ultab, que numa entrevista, aliás uma de suas últimas, disse com todas as letras que, apesar das torturas e sofrimentos, a luta tinha valido a pena. E um dos argumentos utilizados por ele foi que graças a ela a reforma agrária tinha entrado na agenda da sociedade, algo que, na sua época era quase que somente levantado pelos comunistas. Pode-se hoje questionar modelo em questão ou os projetos em curso, mas é difícil alguém falar contra reforma agrária. E isso foi um passo gigantesco e prova que não devemos menosprezar a intervenção daqueles antigos militantes.
Vermelho: Como teve inicio o conflito em Trombas e Formoso e qual o papel que o Partido Comunista desempenhou nele?
Paulo Cunha: A luta camponesa de Formoso e Trombas foi o mais bem organizado movimento camponês da história do Brasil, tendo durado 10 anos. A luta teve início quando os camponeses começaram a resistir ao processo de grilarem de suas terras. O Partido Comunista teve uma atuação determinante no conflito. Vale lembrar que os membros do núcleo dirigente de Formoso eram todos quadros comunistas, além de camponeses de origem, e isso foi uma diferença em relação a outras intervenções. Eles já estavam organizados na Colônia Agrícola de Ceres, e neste processo teve papel fundamental Gregório Bezerra. E alí, a partir da linha do Manifesto de Agosto (1950) e particularmente no seu desdobramento mais bem fundamento, as resoluções do 4º Congresso do PCB (1954) foi desenvolvida a proposta de intervenção objetivando – na linha da Revolução Chinesa – a Revolução Brasileira.
Vermelho: Na mesma época eclodiu o conflito armado dos camponeses de Porecatu no Paraná. O que estes conflitos tiveram em comum?
Paulo Cunha: Porecatu aconteceu um pouco antes, mas teve os mesmos pressupostos desta influência e a luta armada como fator determinante no processo de luta. Resultou ali numa vitória parcial e com uma duração menor que o conflito de Trombas. Aquela experiência – de certa forma – foi mais envolvente e teve uma adesão entusiástica maior que a fase inicial do conflito de Trombas, já que a intervenção dos comunistas também aconteceu pouco tempo depois da própria cassação do registro do Partido.
Vermelho: Nesse período também existiram outros movimentos de resistência camponesa dirigidos pelo Partido Comunista?
Paulo Cunha: De fato fala-se mais destes movimentos. Houve o de Fernandopolis, também uma tentativa de terras libertadas no Triângulo Mineiro, entre outros. Alguns foram totalmente vitoriosos nas reivindicações locais, outros parcialmente. Muitos não passaram de um estágio embrionário de desenvolvimento. Algumas dessas experiências acabaram em massacres, sendo o mais conhecido o de Tupã (São Paulo 1950).
Vermelho: Qual a influência da Revolução Chinesa no projeto estratégico dos comunistas brasileiros a partir do final década de 1940?
Paulo Cunha: Foi muito maior que o conhecido e mesmo admitido. Primeiro, a política de regiões libertadas, estratégia que foi a desenvolvida com sucesso na China. Segundo, a China – o país mais populoso do mundo – tornara-se comunista. Face ao impacto deste grande acontecimento, sua influência foi imediata entre os comunistas brasileiros.
È bom lembrar que vivíamos em plena Guerra Fria e mal ensaiávamos os primeiros passos para se pensar teoricamente o Brasil. Os primeiros estudos que possibilitariam os comunistas brasileiros pensarem estratégias de intervenção descoladas das leituras esquemáticas da 3ª Internacional ainda levariam alguns anos para serem produzidos.
Vermelho: No imaginário popular da esquerda – e na propaganda da direita – ficou a imagem da República Livre de Trombas e Formoso: uma região libertada administrada pelos camponeses dirigidos pelo Partido Comunista. O que isso tinha de realidade?
Paulo Cunha: Eu tenho muito cuidado em me referir àquele movimento como República, na medida em que esta foi uma tese construída por setores conservadores para forçar a intervenção do Exército na região. Chegaram, inclusive, a forjar uma Constituição com esse objetivo e muita gente foi presa e torturada por isso. O curioso é que esta leitura também ganhou o imaginário de setores de esquerda, mas não partilho dessa tese. Costumo dizer que o conceito de comuna poderia ser melhor operacionalizado face a influência da Revolução Chinesa juntos aos comunistas à época e a proposta de intervenção decorrente.
A região de Trombas, de fato, foi controlada pelos camponeses dirigidos pelos comunistas. Este foi o resultado da ausência deliberada do governo do Estado na área e da trégua informal estabelecida, algo que durou aproximadamente dois anos. Ali, a Associação dos Trabalhadores e Lavradores de Formoso e Trombas foi o governo da área. Costumo dizer que isso, por si só, tem um peso enorme pensando a teoria da organização e a cultura pouco participativa que nós temos.
Vermelho: Quando terminou o conflito e qual o resultado dele para a região e para o movimento camponês no Brasil?
Paulo Cunha: Quando houve o golpe e a região foi invadida e o grupo inicial mais atuante caiu na clandestinidade. Nos anos 70, a área foi mais uma vez invadida e a repressão foi feroz, com a prisão de dezenas de posseiros, a prisão de seus líderes mais conhecidos, inclusive José Porfírio, o primeiro deputado camponês da História do Brasil.
Aos poucos, o quadro fundiário foi se alterando e acredito que foi quase uma política de estado, mas entendo que a lição maior que temos que registrar é o lugar do campesinato na história da lutas desse país – são muitos os exemplos desde Canudos-; mas principalmente a idéia que o povo organizado é o verdadeiro sujeito da história.