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Uri Avnery: “Quem é o Mandela palestino”

É um desastre a divisão dos territórios palestinos em um ''Hamástão'' na Faixa de Gaza e uma ''Fatálândia'' na Cisjordânia. Desastre para os palestinos, desastre para a paz e portanto desastre para os israelenses.

A liderança política e militar de Israel está feliz com a cisão, seguindo a doutrina do ''Se é ruim para a Palestina e bom para Israel''. Essa doutrina guiou a política sionista desde o primeiro momento. Haim Arlosoroff, o líder sionista assassinado não se sabe por quem numa praia de Telavive em 1933, já condenava essa doutrina em seu último discurso: ''Nem tudo o que é ruim para os árabes é bom para os judeus e nem tudo que é bom para os árabes é ruim para os judeus.''



Os palestinos superarão a divisão? As chances de que a superem parecem diminuir dia a dia. O fosso que separa os dois partidos só faz aumentar.



Para a Fatá na Cisjordânia, liderado pelo presidente Mahmoud Abbas, o Hamás é uma gangue de fanáticos que imitam o Irã e são guiados pelo Irã, os quais, como os aiatolás, estão levando seu povo na direção da catástrofe.



O Hamás acusa Abbas de ser um marechal Petain palestino, que fez acordo com os ocupantes e despenca pela ladeira escorregadia do colaboracionismo.



A propaganda dos dois lados envenena a discussão, e a violência dos dois lados alcança o paroxismo.



Parece um beco sem saída. Muitos palestinos desesperaram de encontrar modo de escapar da arapuca. Outros procuram soluções criativas. Afif Safieh, chefe da missão em Washington da Organização de Libertação da Palestina, por exemplo, propõe que se crie um governo palestino formado de especialistas neutros, que não sejam membros nem da Fatá nem do Hamás. As chances de que isso aconteça são mínimas. 



Mas um nome começa a aparecer cada vez mais freqüentemente nas conversas privadas em Ramala: Marwan Barghouti.



''Ele tem a chave na mão'', dizem lá, ''tanto para o conflita Fatá-Hamás como para o conflito Israel-Palestina.''



Muitos vêem Marwan como o Nelson Mandela palestino. São homens muito diferentes, na aparência física e no temperamento. Mas têm muito em comum.



Ambos converteram-se em heróis nacionais atrás das grades. Ambos foram condenados por terrorismo. Ambos defenderam a luta armada. Mandela apoiou, em 1961, a decisão do Congresso Nacional Africano que iniciou a luta armada contra o governo racista (mas não contra os civis brancos). Passou 28 anos na prisão e recusou-se a assinar uma declaração em que denunciaria o ''terrorismo'' e que o livraria da prisão. Marwan apoiou a luta armada da organização Tanzin da Fatá e foi várias vezes condenado à prisão perpétua.



Ambos era favoráveis à paz e a conciliação, mesmo antes de serem presos. Conheci Barghouti em 1997, quando se juntou a uma manifestação do ''Grupo da Paz'' (Gush Shalom) em Harbata, cidade vizinha de Bil'in, contra a construção do assentamento Modiin-Illit, que estava começando. Cinco anos depois, durante seu julgamento, organizamos um protesto no tribunal, com o slogan ''Barghouti na mesa de negociações, não na prisão!''



Semana passada, visitamos a família de Marwan em Ramala.



Conheci Fadwa Barghouti no funeral de Iasser Arafat. Seu rosto estava lavado de lágrimas. Havia uma multidão, o barulho era ensurdecedor e só pudemos trocar algumas palavras.



Desta vez, estava calma e composta. Só riu quando soube que Teddy Katz, ativista do Gush que participava da visita, sacrificara uma unha do pé por Marwan: durante nosso protesto na corte, fomos violentamente atacados pelos policiais; e um deles pisou com a bota no pé de Teddy, que usava sandálias.



Fadwa Barghouti é advogada por profissão, mãe de quatro filhos (três filhos e uma filha). O mais velho, Kassem, já esteve seis meses preso sem julgamento. É loura, de cabelos louro-escuros (''Todos, exceto Marwan, somos louros,'' explicou, com um sorriso enigmático: ''Talvez por causa dos Cruzados.'').



Os Barghoutis são uma grande família Hamula (família estendida), que habitam em seis cidades próximas de Bir Zeit. O Dr. Mustapha Barghouti, médico conhecido por sua luta em defesa dos direitos do homem, é parente distante. Marwan e Fadwa – que também é Barghouti por nascimento – são naturais de Kobar.



A família de Marwan Barghouti vive num apartamento confortável num condomínio. No caminho para lá, observei que estão sendo construídos muitos prédios em Ramala – parece que prédios novos brotam em cada esquina, inclusive edifícios comerciais.



Na porta do apartamento, um quadro bordado diz, em inglês: ''Bem-vindo à minha casa''. No apartamento há muitas fotografias de Marwan Barghouti, e há um grande desenho inspirado na foto que ficou famosa e que o mostra no tribunal, erguendo as mãos algemadas, como boxeador vitorioso. Quando as forças de segurança o estavam procurando, ocuparam o apartamento por três dias e penduraram na sacada uma grande bandeira de Israel.



Fadwa Barghouti é das poucas pessoas autorizadas a visitá-lo. Não como advogada, mas como ''familiar próximo'' – definição que inclui pais, esposas, irmãos e filhos menores de 16 anos.



No momento, há cerca de 11 mil palestinos presos em prisões israelenses. Calculando-se uma média de cinco ''familiares próximos'', tem-se cerca de 55 mil visitantes possíveis. Todos têm de solicitar permissão para cada visita, e muitas vezes não a obtêm, por ''razões de segurança''. Fadwa também tem de pedir autorização a cada visita, e só pode ir e voltar, sem parar em qualquer outro local em Israel. Os três filhos já não podem visitar o pai, dado que já ultrapassaram a idade limite de 16 anos. Só a filha ainda pode visitá-lo.



Marwan Barghouti é provavelmente o nome mais popular entre os palestinos. Nisto também se parece com Mandela, durante os anos de prisão. 



É difícil explicar a origem de sua prestígio e autoridade; não emanam de alguma alta posição na hierarquia da Fatá, porque o movimento está desorganizado e não há qualquer hierarquia clara. No tempo em que foi um simples ativista em sua cidade, destacava-se pela força da personalidade. É esse mistério chamado ''carisma''. Marwan irradia uma autoridade calma, sem rompantes.



A guerra de calúnias entre Fatá e Hamás não o atinge. O Hamás não o ataca. Ao contrário: quando apresentaram a lista de prisioneiros a serem libertados em troca do soldado Gilad Shalit, Marwan Barghouti era o primeiro nome da lista, apesar de ser líder da Fatá.



Foi ele quem, com outros líderes presos de outras organizações, redigiu o famoso ''documento dos prisioneiros'', que pregava a união nacional. Todas as organizações palestinas aceitaram o documento. Assim nasceu o ''acordo de Meca'', que gerou o Governo de Unidade Nacional (que durou pouco tempo). Antes de o acordo ser assinado pelos partidos, todos mandaram mensageiros para consultar Marwan, e o acordo só foi feito depois dessa consulta. 



Aproveitei minha visita a Ramala para ouvir a opinião dos seguidores de Barghouti. Todos lutam para não se deixar envolver no clima de ódio mútuo que consome os dois lados.



Alguns opõem-se tenazmente à ações do Hamás em Gaza, mas lutam para entender os motivos. Para esses, os partidários do Hamás, ao contrário dos líderes da Fatá, nunca estiveram no Ocidente e não freqüentaram universidades estrangeiras. Seu mundo mental é produto do sistema de educação religiosa. Têm horizonte estreito. A complexa situação internacional, na qual o movimento nacional palestino é obrigado a operar, é-lhe quase desconhecida.



Nas últimas eleições, explicaram meus interlocutores, o Hamás esperava obter 35-40% dos votos, o que legitimaria seu movimento. Foram surpreendidos pela vitória e não souberam o que fazer com ela. Não tinham planos. Foi erro, naquele momento, terem composto o governo só com partidários do Hamás, em vez formarem um governo de coalizão. Subestimaram a reação internacional e a reação de Israel.



Os partidários de Marwan não fogem da autocrítica. Para eles, a Fatá também tem culpa pelo que aconteceu em Gaza. O movimento errou quando prendeu e humilhou os líderes do Hamás. Por exemplo, prenderam Mahmoud al-Zahar, ministro das relações exteriores no governo do Hamás, humilharam-no, cortaram-lhe a barba e o chamaram pelo nome de uma famosa dançarina egípcia. Esse é um dos motivos do ódio feroz que separa a Fatá, e al-Zahar e seus companheiros.



Todos têm certeza de que Muhammad Dahlan, ex-conselheiro de segurança e confidente de Mahmoud Abbas, conspirou com os americanos para o golpe militar na Faixa de Gaza. Dahlan, ''o querido'' dos americanos (e dos israelenses) acreditava segundo eles que, se tivesse armas e dinheiro, poderia tomar Gaza. Essa idéia arrastou o Hamás a agir primeiro, para assumir antes o controle armado na área. Dado que a maioria da população apoiava o Hamás e detestava Dahlan, acusado de colaborar com a ocupação, o Hamás foi facilmente eleito. Abbas, agora, exilou Dahlan.



O centro de gravidade do Hamás está na Faixa de Gaza. Esse é o problema de Khaled Mashal, líder do Hamás que vive em Damasco. Ao contrário de seus dois deputados, Mashal não tem raízes em Gaza. Por isso precisa de dinheiro para firmar-se lá; e o consegue do Irã.



(Gostaria de falar mais sobre as idéias do Hamás, mas é impossível entrar em Gaza; e todos os nossos interlocutores do Hamás, em Jerusalém Oriental, foram presos.)



Como os palestinos desatarão este nó? Como restabelecerão uma liderança nacional aceita pela população da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, que possa liderar a luta nacional e fazer a paz com Israel, quando a paz for possível?



Os seguidores de Barghouti acreditam que, na hora certa, quando Israel chegar à conclusão de que a paz é necessária, ele será libertado e terá papel central na reconciliação – mais ou menos como Mandela foi libertado na África do Sul quando o governo da minoria branca chegou à conclusão de que já não era possível manter o regime do apartheid. Tenho certeza de que, para apressar esse desenvolvimento, as forças de paz em Israel devem dar início à campanha pela libertação de Barghouti.



O que acontecerá até lá?



Não há praticamente ninguém, no lado palestino, que acredite que Ehud Olmert fará ou implementará qualquer acordo de paz. Poucos crêem que sairá alguma novidade do ''encontro internacional'' previsto para novembro. Os palestinos dizem que o encontro de novembro é mais um osso que o presidente Bush jogou para Condoleezza Rice, que perde apoios dramaticamente.



E se isso der em nada?



''Não existe vácuo'', disse-me um dos líderes da Fatá. ''Se os esforços do presidente Abbas não derem frutos, haverá nova explosão, como a intifada depois do fracasso de Camp David.''



Como será isso possível, depois de os ativistas da Fatá terem deposto as armas e rejeitado as soluções de violência? ''Nascerá outra geração'', disse meu interlocutor. ''Como aconteceu antes – os mais velhos cansam-se e cedem lugar aos mais jovens. Se a ocupação não acabar e se não houver paz, uma paz que permita que os jovens se voltem para a universidade, para as famílias, para o trabalho, para os negócios, não há dúvidas de que haverá uma nova intifada.''



Para alcançar a paz, os palestinos precisam de unidade nacional, tanto quanto os israelenses precisam alcançar um consenso favorável à desocupação. O homem que simboliza a esperança de unidade para os palestinos aguarda, atrás das grades da prisão de Hasharon.



Tradução de Caia Fittipaldi. Publicado originalmente em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1189892177/