Sem categoria

Artigo: quando a UNE, pela autonomia, dobrou Getúlio Vargas

Leia a segunda parte do artigo – escrito por ocasião das comemorações dos 70 anos da UNE – “Um encontro na diversidade: Juventude Brasileira versus UNE”, da doutoranda em História Social da USP e coordenadora-técnica do Projeto Memória do Movimento Estuda

“Um encontro na diversidade:
Juventude Brasileira versus UNE”* 
2º Parte


 


A UNE ficou sabendo da “existência” da Juventude Brasileira apenas no início de 1943. Hélio de Almeida foi ao encontro de Capanema para indagar a procedência da notícia.


 


“O Ministro da Educação nos informou que realmente estava estudando a organização da Juventude Brasileira mas que ela não seria, de modo algum, uma entidade de gênero fascista. De qualquer forma pediu-nos que não nos manifestássemos a propósito do evento pois que antes de anunciar a organização da juventude ele discutiria sua estruturação com a diretoria da UNE”, teria dito Almeida.(1) 


 


Também, no início de janeiro de 1943, o major Jair Dantas expede um oficio ao Ministro Capanema mostrando a composição para o quadro de pessoal permanente e extranumerário, para funcionamento inicial da secretaria da Juventude Brasileira. Na proposta enviada encontra-se um total de trinta servidores (dentre eles três zeladores e cinco datilógrafos) que permitiriam realizar os trabalhos para “vigilância, asseio e conservação do prédio situado na Praia do Flamengo, destinado para sede da Secretaria Geral e onde estão sediadas várias associações de estudantes”.(2) 


 


Na mesma sede


 


Em 1º de abril de 1943, Gustavo Capanema despacha a Portaria Ministerial 225 que dispunha sobre a instalação da Direção Nacional da Juventude Brasileira e da União Nacional dos Estudantes na extinta Sociedade Germânia. A portaria transcrevia quatro itens:


 


1- A Direção Nacional da Juventude Brasileira terá a seu cargo a administração do prédio, sua conservação e vigilância, cabendo-lhes movimentar os recursos a esse fim destinados;


2- A Juventude Brasileira ocupará o 1° andar, portaria, salas da frente do 2° andar e todas as dependências do 3° andar;


3- A UNE assumirá as demais dependências;


4- Salão de festas para as duas entidades. (3) 


 


De acordo com os relatos de Hélio de Almeida e José Gomes Talarico, o prédio de três andares, naquele momento ocupado pela UNE, estava distribuído entre as entidades estudantis, cabendo-lhes, através da imposição governamental, um espaço ínfimo diante do qual ocupavam.


 


Para Hélio de Almeida “o texto da Portaria significava que a UNE, para permanecer no edifício, deveria subordinar-se à Juventude Brasileira, coisa que nenhum universitário admitiria”.


 


UNE reage


 


Sobre a portaria, o presidente da UNE encaminha uma carta ao Ministro com o seguinte conteúdo:


 


“(…) V. Excia. agiu de forma desleal para com a presidência da União Nacional dos Estudantes, não cumprindo sua formal promessa de separação das sedes desta entidade e da Juventude Brasileira bem como a afirmação a nós reiteradamente feita de que nada seria em definitivo resolvido sem que tivéssemos prévio conhecimento (…) depositei em mãos dos meus colegas de diretoria o cargo de Presidente da UNE, para o qual fora eleito no 5º Conselho Nacional de Estudantes e empossado por V. Excia. (…)”. (4) 


 


Em 07 de abril, uma nova portaria número 227, foi assinada pelo Ministro, dessa vez dispondo da administração do edifício, onde funcionavam as entidades já citadas.


 


A repercussão no meio estudantil foi intensa, a julgar pelos inúmeros telegramas de solidariedade a UNE, encontrados no Arquivo Capanema. Mas cabe observar uma ressalva feita pelo próprio Hélio de Almeida: “Os jornais e rádios da época foram proibidos pelo DIP de tocar no assunto”. Podemos inferir que, justamente por causa da censura, encontramos as inúmeras cartas de solidariedade ao presidente da entidade.


 


O DIP


 


O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) foi criado em 1939, tem sua origem no início do Governo Provisório, em 1931, com a criação do Departamento Oficial de Propaganda que foi transformado, em 1934, em Departamento de Propaganda e Difusão Cultural. O DIP, subordinado diretamente à Presidência da República, tinha por finalidade “centralizar, coordenar, orientar e superintender a propaganda nacional, interna ou externa, e servir, permanentemente, como elemento auxiliar de informação dos Ministérios e entidades públicas e privadas, na parte que interessa à propaganda nacional.”(5)  


 


Além de regular, orientar e censurar os meios de comunicação existentes no país, o departamento atuava sobre outras divisões: divulgação, difusão, cinema teatro e turismo.


 


Maria Helena Capelato observa que os meios de comunicação, tendo sua liberdade cerceada, ficaram impedidos de externar suas opiniões, bem como expressar opiniões alheias ao regime devido à censura (6) . Muitos jornais acabaram aderindo à estrutura governamental proposta como forma de “sobrevivência”. Para esses, cabia exaltar a figura do chefe da nação e seus feitos. Aqueles que se contrapunham, ficavam a mercê da censura.


 


Sem dúvida, uma discussão desse teor não poderia chegar ao público através da imprensa. Natural, então, que essa questão passasse em branco nos jornais da época mesmo causando “furor” dentro do movimento estudantil.


 


Sabendo que a censura está presente em toda e qualquer ditadura, é favorável ao governo que isso seja imposto à sociedade, para que o mesmo tenha inteira liberdade de ação. Apesar desse cerceamento, encontramos pontos de contato da entidade estudantil com o governo.


 


Renúncia do Presidente


 


Voltando à renúncia, a UNE divulga uma nota oficial referindo-se ao caso Hélio de Almeida e relatando que, devido à impossibilidade de outros membros, estaria assumindo a presidência da entidade seu Secretário Geral, Tarnier Teixeira. A nota termina falando do entendimento com o MES para um encaminhamento satisfatório da questão. Prova que o diálogo entre o Ministério e os estudantes sempre se fazia presente.


 


Nenhum documento, no arquivo pesquisado, foi encontrado, datando a ocupação oficial por parte da Secretaria Geral da Juventude Brasileira no prédio da Praia do Flamengo. Nos documentos pertinentes a esse órgão, dentro do Arquivo Capanema, nada se encontra sobre o incidente, com uma única exceção: um ofício, datilografado em folha branca, sem data, sobre as “adversidades” encontradas com as entidades estudantis naquele edifício. Diz o documento:


 


“O que tem havido no Edifício da Juventude: 1- ordens aos zeladores, 2- tentativa de agressão ao zelador, 3- sorvete dançante aos domingos e reuniões em outros dias, 4- enorme gasto de luz, força e gás (o SAPS vai pagar a despesa de gás), 5- exigência de toalhas nas mesas (o SAPS se recusa a pagar a lavagem), 6- muitos móveis já precisam de reparos, 7- mais de 100 telefonemas interurbanos foram pagos pela administração, 8- são três os telefones dos estudantes – Eles ficam com o encargo das mensalidades?, (…) O prédio pertence a súditos do Eixo. Não seria o caso de ser nomeado um interventor?”(7) 


 


Mesmo sem muitos “alardes” vemos que a convivência entre as duas instituições não era “harmoniosa”, como já havia de se esperar de entidades com finalidades tão distintas.


 


Estudantes barrados


 


Outro episódio acirrou ainda mais os ânimos dos dirigentes da UNE. Numa solenidade, promovida pela Universidade do Brasil na sua Escola Nacional de Música, viram-se impedidos de entrar no recinto os dirigentes dos diretórios acadêmicos daquela mesma universidade, devido a uma medida do secretário geral da Juventude Brasileira, major Jair Dantas.


 


O ato ocasionou a formulação de um documento enviado ao Ministro em 12 de maio de 1943. Assinado por várias lideranças estudantis, o documento tinha o intuito de “solucionar divergências e incompreensões” entre os estudantes e o Ministro. Dentre outras questões abordadas, descreveram:


 


“A autonomia que deve reger as entidades universitárias, estamos já agora certos, não pode ser preservada coabitando as mesmas com entidades outras de caráter não universitário. Mas, evidente se torna este fenômeno si se considerar o caso da Direção Nacional da Juventude Brasileira, e, em particular que tem seu secretário geral, com a sua autoridade, de interferir em atividades da classe universitária (…)”(8)  


 


O documento ainda ressalta a certeza da incompatibilidade de convivência com a Juventude Brasileira e o pedido de que a mesma se retirasse das instalações da extinta Sociedade Germânia.


 


A separação


 


Diante dos episódios ocorridos, Capanema propôs a retirada da direção da Juventude Brasileira, desde que Hélio de Almeida não retornasse à presidência da UNE. O ex-presidente relembra: “disse-lhes que o pivô da nossa luta não era eu e sim a Juventude Brasileira. Se tínhamos condições de fazer desaparecer para sempre tal juventude o preço da minha não volta à presidência da UNE era, a meu ver, um preço muito barato”.(9) 


 


E assim foi feito. Tanto que no início de junho daquele ano uma carta enviada a Vargas, por Joaquim Pedro Salgado Filho, pedia o prédio do Flamengo para a Aeronáutica. No próprio documento, uma nota escrita por Capanema:


 


“O prédio do antigo Clube Germânia está ocupado pela UNE, que necessita de todas as suas dependências tanto assim que foi resolvida a mudança, para outro local, da Secretaria da Juventude Brasileira, também ali instalada. Em tais condições, este Ministério opina, contrariamente à cessão do mesmo edifício para repartição do Ministério da Aeronáutica” (10) .


 


Berços distintos


 


Este é o único momento em que as entidades se cruzam. A Juventude Brasileira, criada em 1940, que depois de seu primeiro objetivo de ordem político-militar, passou a ter características sociais ligadas essencialmente ao civismo. A UNE teve suas origens na Casa do Estudante do Brasil, que tinha por intuito um fim social por excelência, foi transformando-se num forte movimento político, muito influenciado pelos comunistas da época.


 


Os atos e passeatas da Juventude Brasileira eram amplamente divulgados e, a julgar pela reação da entidade dos universitários, os mesmos diziam desconhecer seus “feitos” até aquele momento.


 


De acordo com Hélio de Almeida e José Gomes Talarico, a Juventude Brasileira teria sido criada em fins de 1942. Como a UNE não saberia da existência da Juventude Brasileira? E por que somente no momento em que foram realmente tocados com o problema os estudantes resolveram reagir?


 


Observamos que o não reconhecimento é um ato político. De acordo com as políticas que a entidade estudantil empregava, não poderia compactuar com a formatação daquele projeto para a juventude. Então, somente quando tocada com o problema a UNE resolve se manifestar.


 


Autonomia da UNE


 


A Juventude Brasileira, um órgão atrelado ao governo, que parecia ser uma proposta de política para juventude, não teve a real repercussão pretendida e não passou da realização de feitos cívicos que acabaram por esmorecer.


 


O episódio apresenta o diálogo tencionado que o governo mantinha com os estudantes, mas também, evidencia uma relativa autonomia da UNE. O pretendido controle estatal sobre órgãos, sindicatos e entidades, é uma das marcas do Estado Novo, nesse caso, mostra certa flexibilidade por parte do governo com o movimento estudantil.


 


O resultado é que a UNE saía desse incidente revigorada e pronta para outras lutas. A começar pela própria campanha a favor da deposição de Vargas.


 


Considerações finais


 


A Juventude Brasileira acabou tendo por finalidade primordial o culto à Pátria, personificada na figura de Getúlio Vargas. Basta lembrarmos dos exemplos de Tiradentes e do discurso de Gustavo Capanema sobre a figura de Duque de Caxias. O objetivo que acabou vigente foi transformar o projeto num meio para mitificação do líder e do seu regime, servindo assim como sua base de sustentação e difusão.


 


Assim, pode-se concluir que não existia de fato uma política para a juventude no Estado Novo. A Organização Nacional da Juventude e a Juventude Brasileira foram esvaziadas das suas pretensões e nunca chegaram, efetivamente, a ser implantadas como uma política pública do governo voltada para a questão.


 


O caminho inverso fez a União Nacional dos Estudantes. A entidade tem suas origens na Casa do Estudante do Brasil, cujas finalidades tinham um caráter estritamente social. A própria fundação da entidade já demarca essa diferença – o 2º Congresso, em 1938, acabou por abarcar discussões políticas e polarização de idéias. Tudo o que foi proibido no 1º Conselho Nacional de Estudantes, organizado pela CEB, acaba não vigorando no 2º Congresso.


 


O rompimento com a Casa do Estudante do Brasil acaba, então, definindo a conduta política da entidade estudantil, tanto nas questões que se referiam à educação, quanto às relativas à própria conjuntura em que o país estava inserido.


 


Pode-se afirmar, a partir disso, que a entidade nasceu autônoma. Sabendo que o “nascimento” da UNE ocorreu no mesmo ano em que foi decretada a criação da Organização Nacional da Juventude, pode-se inferir que a entidade estudantil nasceu como um contraponto à tentativa de implantação de uma política oficial de juventude.


 


*Angélica Muller é doutoranda em História Social da USP e coordenadora-técnica do Projeto Memória do Movimento Estudantil.


 


Notas:


(1) Idem
(2) Arquivo GC 38.04.18 r: 53 fot 483. CPDOC/ FGV.
(3) Arquivo GC 38.08.09 r: 53. fot. 578. CPDOC/FGV.
(4) Arquivo GC 38.04.18 r: 50 fot 620. CPDOC/FGV. (vide anexo X)
(5) LEX, Legislação Federal, 1939, p. 666-667. In CARONE, Edgard. A Terceira República 1937-1945. Coleção Corpo e Alma do Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1976. p. 48.
(6) CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In: FERREIRA, Jorge; (6) DELGADO, Lucilia de A. Neves. Op. Cit. p. 118.
(7) Arquivo GC 38.08.09 r: 53. fot. 563. CPDOC/FGV.
(8) Arquivo GC 38.04.18 r: 50 fot. 626. CPDOC/ FGV. (vide anexo XI)
(9) BARCELLOS, Jalusa. Op. Cit.  P. 22.
(10) Arquivo GC 38.04.18 r: 50 fot. 654. CPDOC/ FGV.


 


Leia também :


1º Parte: Artigo de historiadora da USP revela a juventude de Vargas