Comunicação e poder
Carlos Pompe
Sinais de fumaça, tambores, pinturas e desenhos nas cavernas, marcas em árvores e pedras, pombos correio foram meios de comunicação desenvolvidos para que os comunicantes precisassem se deslocar para levar uma mensag
Publicado 28/09/2007 16:46
A Igreja usa até hoje o sino (anunciando a hora da Ave Maria). No passado, três badaladas rápidas eram a chamada para a missa, badaladas lentas anunciavam mortes. A palavra propaganda veio do latim congregatio de propaganda fide 'congregação para propagação da fé', instituída pelo papa Gregório XV em 1622, do verbo latino propagáre – pôr em mergulhia ou enterrar as idéias na mente das pessoas.
Com a difusão industrial da informação, a partir do século XIX, os meios de comunicação foram se transformando em empresas que, no capitalismo, buscam o lucro. Até o século XX, os donos de jornal, com raras exceções, não participavam do esquema de poder político. Mas os proprietários de empresas de comunicação não procuram somente o lucro. Querem também exercer influência sobre o poder. O Estado, por sua vez, além de ser um grande anunciante, ainda socorre financeiramente empresas em dificuldades.
A partir do final do século passado, o acelerado progresso tecnológico possibilitou a ampliação dos meios de comunicação e sua passagem de veículos transmissores para meios interativos, como a internet. O que pretendo abordar, aqui, não são os meios de comunicação como um todo (cinema, espetáculos, variedades, quadrinhos, arte etc.), mas os noticiários dos meios de comunicação controlados por grandes grupos econômicos capitalistas.
A visão sem classe da comunicação
Em especial após o fracasso das experiências socialistas de modelo soviético européias, ganhou força uma visão “sem luta de classes” da sociedade. É algo elaborado. Admite as classes e estamentos sociais, mas não a luta entre eles como o motor da história. É a ideologia do “fim das ideologias”. Trata-se de uma visão muito presente nos meios acadêmicos e nas abordagens dos principais colunistas dos meios de comunicação.
Assim, Eugênio Bucci (jornalista, pesquisador da USP, que deixou a presidência da Radiobrás em abril último) escreveu em 25/9/2007, no texto A missão de servir ao cidadão e vigiar o poder: “os veículos jornalísticos, na busca de aperfeiçoar os parâmetros de sua governança, vêm desenvolvendo métodos que garantem independência de gestão editorial em relação não apenas às intervenções dos anunciantes, mas também às interferências – demandas extra-jornalísticas – dos acionistas” (infelizmente, não cita nenhum desses veículos).
Continua: “Apartidário, equilibrado – e livre. Se quer ser fiel à sua responsabilidade social, o jornalista não deve permitir que agendas, causas ou doutrinas totalizantes de uma parte da sociedade – venham elas de ONGs, de igrejas, de governos, grandes corporações, de partidos, de onde vierem – contaminem seu trabalho. É mais adequado que ele procure desvincular-se material e formalmente desses pólos de poder e de influência, sem que isso signifique desmerecer a legitimidade que eles têm”. (NB: jornalista sem causa, sem doutrina, em governo, sem patrão, sem partido, sem religião, sem ONG. De que mundo será? Infelizmente, não cita nenhum nome exemplar)
No dia seguinte, Bucci deu uma entrevista sobre seu arrazoado, onde afirmou: “A comunicação pública só irá vingar entre nós se for independente, tanto dos governos quanto dos mercados, se for gerida com austeridade, se for uma escola para novas linguagens, se encontrar sua especificidade insubstituível. Isso é possível, mas ainda falta muito chão”. Bem, pelo menos admite que está faltando chão para sua análise…
Visão com classe
O marxismo é uma visão classista, declaradamente vinculada ao proletariado. Busca uma abordagem objetiva dos fenômenos; uma reflexão geral totalizante, buscando as ligações e relações mais importantes e essenciais do objeto estudado; analisa o desenvolvimento, o automovimento. Faz uma abordagem histórica concreta; considera as necessidades da prática social; busca o elo mais importante do seu desenvolvimento. E, com o pé no chão, indica que o poder da mídia está vinculado à estrutura da sociedade.
“Sim, eu uso o poder!” A frase foi pronunciada pelo presidente das Organizações Globo, o jornalista Roberto Marinho. Tinha razão para dizê-la. Em especial a partir da segunda metade dos anos 60 do século passado, o vínculo entre Rede Globo e poder é inegável em nosso país. Todos sabemos que Roberto Marinho nunca foi marxista.
Alvin e Heid Toffler, autores de A terceira onda e O choque do futuro, escreveram: “A guerra da ‘terceira onda’ depende menos da ocupação territorial e mais da supremacia da informação. Esta supremacia pode significar destruir o sistema de comando e controle do inimigo, importar do inimigo os seus equipamentos de radar e vigilância. Mas requer também conhecermos mais sobre o adversário do que ele sabe sobre nós. Significa privá-lo de olhos e ouvidos”. (A primeira onda teria sido a mudança da cultura nômade de caçadores para uma revolução agrária, onde a terra era o recurso básico. A segunda onda foi calcada na produção industrial, com distribuição de massa, onde o capital e trabalho eram as ferramentas principais. A terceira onda, a atual, seria a era pós-industrial, com maior diversidade, foco em nichos de mercado e subgrupos, onde a informação substitui os recursos materiais e torna-se o principal insumo dos trabalhadores. Note-se que os autores admitem as classes, mas não a luta entre elas como motor da história, preceito marxista).
Outro crítico do capitalismo, que também não é marxista (embora admita a luta de classes), o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, afirmou em recente visita ao Brasil: “A grande imprensa é a principal arma que tem hoje o imperialismo para tentar evitar nossa união” (da América Latina).
Mas vamos ao próprio Karl Marx, que escreveu: “o conflito humano resultante das desigualdades econômicas intrínsecas a estas duas classes (burguesia e proletariado) é o ponto chave das sociedades industriais modernas, juntamente com o modo, a forma ideológica de manipular as idéias para que a grande massa não perceba o vínculo entre poder econômico, poder político e sua influência na qualidade da vida de todos (alienação política e cultural)”.
O sistema atual dos meios de comunicação enquadra-se nestas observações do fundador do socialismo científico. Esse sistema é vinculado ao poder político, à força econômica, à pressão ideológica, e serve como alicerce para os objetivos da classe dominante. No Brasil, os grandes jornais e revistas semanais são, no geral, dos mesmos donos das principais agências noticiosas. Também a radiodifusão – emissoras de TV e redes nacionais de rádio – está concentrada nas mãos de poucos proprietários. E direcionam tudo que se publica no país – na política, na economia, na cultura, nas artes, nos costumes, nas religiões. As opiniões que veiculam são carregadas de intenções e direcionamentos. É bom lembrar que imprensa não é poder, não é o “4º poder”, como afirmam alguns analistas (geralmente ligados aos monopólios de comunicação). Os meios de comunicação não promulgam nenhuma regra de comportamento, nenhuma norma, nenhuma sanção. Como disse Marx, como ironia, “se a imprensa fosse tudo, realizaria todas as funções de um povo, e este seria supérfluo”.
Mas o conteúdo transmitido pelos meios de comunicação influi na opinião pública. Como se dá a manipulação das idéias para mascarar o vínculo entre poder econômico, poder político e sua influência na qualidade de vida de todos? Pela escolha ideológica de assuntos e palavras e a omissão intencional de informações; distorção deliberada de notícias.
Dias 21 e 22 de agosto, cerca de 30 mil pessoas – na imensa maioria, mulheres – participaram da terceira Marcha das Margaridas, promovida a partir de ações em todos os estados do país pela Contag, Federações e Sindicatos de Trabalhadores Rurais e pela CUT. No noticiário local de Brasília, a notícia não foi a marcha, mas o grande congestionamento de trânsito (na verdade, agravado por medidas equivocadas do Detran). No Jornal Nacional, a notícia não foram as mobilizações e reivindicações dos participantes, mas unicamente a fala do presidente Lula no evento – um aspecto do pronunciamento, aliás, que não era diretamente vinculado à Marcha das Margaridas.
Dia 25 de setembro, o Jornal Nacional, e no dia seguinte os diários noticiaram que Kamyla Castro, 27 anos, presidente da Juventude do PSDB, abriu o casaco, no Salão Azul do Senado, mostrando uma blusa com a frase “Fora, Renan!”. Era o protesto de uma única pessoa, dirigente de um partido oposicionista, ocupando o noticiário nacional.
O livro A mídia nas eleições de 2006, organizado pelo professor Venício de Lima, apresenta tabelas demonstrando que os noticiários beneficiaram o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, ao editar três vezes mais notícias negativas contra o candidato do PT, Lula. “A grave crise política de 2005 e a eleição presidencial de 2006 marcam uma ruptura na relação histórica entre a grande mídia e a política eleitoral no Brasil”, afirma Venício.
A manipulação não acontece apenas no noticiário brasileiro. É um fenômeno mundial.
Um exemplo da escolha ideológica das palavras: No conflito do Oriente Médio, palestinos e islâmicos que colocam bomba em seus corpos e se explodem para matar adversários são “terroristas”; mas civis judeus e sionistas que atacam palestinos e ocupam suas terras são “radicais”, com um detalhe a mais: geralmente a ação desses “radicais” foi uma resposta a alguma ação anterior dos “terroristas”. Se for para procurar quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha, é bom lembrar que os judeus foram duramente perseguidos por católicos e cristãos europeus, em especial nos séculos XIX e primeira metade do século XX, mas no momento de escolher um território para seu Estado, os sionistas foram ocupar a Palestina – que não era cristã e nem perseguia os judeus –, criando, pela força e terror, Israel…
“Quem lê sobre o conflito no Oriente Médio nas páginas dos jornais tem a impressão de que as informações obedecem ao mesmo padrão. E obedecem mesmo. São quase sempre informações que têm como origem as autoridades de Israel”, denunciou o jornalista da Globo, Carlos Dorneles, no excelente livro Deus é inocente: a imprensa, não.
Namomi Klein, jornalista e escritora canadense, registrou, ao tratar das conseqüências da destruição das Torres Gêmeas e Nova Iorque: “A concentração da maior parte dos meios de comunicação do mundo desenvolvido nas mãos de quatro ou cinco grandes grupos de mídia contribui para agravar o quadro, já que impede o pluralismo jornalístico necessário. Há interesses demais em jogo, o que mina a transparência”.
No caso do Iraque, os principais veículos de comunicação chamam de terroristas as forças que resistem à ocupação do país. No caso da Venezuela, houve um alinhamento imediato aos que reconheceram como legítimo o frustrado golpe contra Chávez, e sua reeleição é sempre colocada como sucesso da manipulação das massas e da falta de liberdade no país…
Noticiário com tratamento diferenciado
Aos meios de comunicação interessa a despolitização da sociedade. Substituem a informação e discussão dos temas políticos pela banalização, vulgaridade, sensacionalismo, espetacularização. Em vez de argumentos racionais, os apelos emocionais.
Mas existem conflitos de interesse dos jornalistas, dos empresários, das fontes, dos anunciantes e dos leitores. Existem disputas entre os (poucos) proprietários dos meios de comunicação, e isso possibilita “janelas” de diferentes opiniões ou abordagens, mas sem que se altere o essencial: a ideologia capitalista e os interesses monopolistas imperantes na sociedade brasileira atual. Os meios de comunicação, em certa medida, buscam alterar ou direcionar a opinião das massas. Não o fazem a partir apenas dos interesses de seus proprietários, mas contemplando também seus anunciantes e apoiadores políticos e sociais. São instrumentos de classe e de setores de classe – mesmo considerando eventuais disputas entre os vários grupos em que dividam as classes.
A intervenção nos processos de tomada de decisão – como está sendo a exigência da cassação do mandato de Renan Calheiros – e o uso das pesquisas de opinião com resultados duvidosos (como foi a da campanha contra a venda de armas no país) são alguns recursos para tratar o cidadão como consumidor, como público-alvo de mensagens e decisões determinadas. Na feliz expressão de Carlos Chagas, confunde-se “opinião pública com opinião publicada”. Os candidatos e as políticas são vendidos como produtos ao eleitor/consumidor.
Na crise da aviação, a Rede Globo filmou pela janela do Palácio do Planalto o assessor do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, fazendo “top top top” quando ficou demonstrado que o governo não teve culpa no acidente do vôo 3045 da TAM em São Paulo, em 16 de julho de 2007, que matou 189 passageiros e mais dez pessoas em terra. A intenção era deflagrar mais uma crise no governo, com as cenas do “episódio verdade”. No entanto, a mesma Globo não mostrou um vídeo do Boninho, um de seus diretores de programas inclusive destinados a adolescentes, ensinando como apodrecer ovos para jogar em transeuntes, em Copacabana.
Este “episódio verdade”, filmado inclusive com o conhecimento do Boninho, e não às escondidas, como foi o do Marco Aurélio, não era notícia? (Foi usado por uma concorrente, a Record.)
Notícia, análise de notícia e propaganda se confundem. “A propaganda é uma tentativa de influenciar a opinião e a conduta da sociedade, de tal modo que as pessoas adotem uma conduta determinada”, escreveu Bartlett, em Political Propaganda. Os meios de comunicação provocam efeitos passionais nos indivíduos. Buscam gerir e influenciar os comportamentos dos indivíduos e dos grupos sociais.
O professor Wanderley Guilherme dos Santos, titular da Academia Brasileira de Ciências, diretor do Laboratório de Estudos Experimentais e pró-reitor de Análise e Prospectiva da Universidade Cândido Mendes, alerta que, em todos os países (com renda per capita superior a 30 mil dólares), a imprensa não tem esta capacidade de criar crises políticas, como tem nos países da América Latina. “O modo tradicional de exercer o poder em países como o Brasil, e isso tem acontecido historicamente com freqüência, é a capacidade que a imprensa tem de mexer na estabilidade, ou seja, de criar crises, cuja origem é simplesmente uma mobilização do condicionamento da opinião pública. O que a imprensa nos países da América Latina, e particularmente no Brasil, tem é a capacidade de criar instabilidades. É a capacidade que a imprensa tem de criar movimentação popular, de criar atitudes, opiniões, independentemente do que está acontecendo na realidade. Isso é próprio de países latino-americanos, mas particularmente no Brasil, em queas empresas jornalísticas têm poder econômico e capacidade e disposição para a intervenção política. Então, a arma da imprensa no Brasil, o seu recurso diante dos governos: esta capacidade de criar instabilidade política”.
O público do noticiário, em geral, tem um desconhecimento sobre os fatos veiculados e fica predisposto a aceitar como verdade o que é apresentado. Aqui, vale lembrar uma frase do Goebbels, o companheiro de Hitler (sempre lembrado quando disse que a repetição de uma mentira pode criar uma verdade): “É mais fácil distorcer a imagem daquilo que desconhecemos”.
Comunicação e política
Os políticos e a política também têm que dar a devida importância aos meios de comunicação. Não adianta apenas denunciá-los e é impossível desconhecê-los. Hoje, a política precisa atrair pautas, câmeras, entrevistas, microfones, âncoras. O mundo se apresenta nos meios de comunicação, que embaralham a distinção entre o real e o imaginário, entre o fato e a versão. As análises de conjuntura, que antes abordavam política e economia, agora devem também tratar dos cenários construídos pelos meios de comunicação. A política deve incorporar a atual dimensão da comunicação, que não é mera divulgação de fatos e eventos, mas uma forma de realização do próprio evento. Realizar um fato político deve levar em conta também como ele será divulgado e tratado.
Que fazer?
Comunicação está subordinada a interesses particulares, de grupos, acima do controle social e que se opõem à democratização crescente da sociedade. Como indicou o marxismo, no período imperialista, no período dos grandes monopólios capitalistas, a sociedade tende para a ditadura dos grandes grupos, e não para a democratização.
A luta contra o domínio do capital deve, portanto, também levar em conta a necessidade de colocar os meios de comunicação sob controle da sociedade e democratizá-los – levando em conta o grande ensinamento marxista de que se trata de uma luta pelo poder político, de uma luta pela construção de uma nova sociedade. Não é uma luta isolada e nem uma aspiração que unificará “toda a sociedade”. Também neste embate, de um lado estão os proprietários dos meios de produção (e de comunicação), e de outro os despossuídos, os trabalhadores, os que vivem da venda de sua força de trabalho.
E, assim como nas outras batalhas desta guerra de classes, é necessário que os setores revolucionários, os setores populares, criem também seus próprios veículos de comunicação – publicações, emissoras de radiodifusão (que no Brasil não estão acessíveis às organizações populares!), portais na internet… E levar em conta esses meios de comunicação também como “organizadores coletivos”, como tão bem indicou Lenin na utilização do Iskra como instrumento de construção do Partido Bolchevique.