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Uri Avnery: A mãe de todos os pretextos

Quando ouço falar de “Choque de Civilizações”, não sei se rio ou se choro.


 


Ou rio, porque é uma idéia tão tola! Ou choro, porque essa idéia tola pode levar a desastres inenarráveis.


 


E choro cada vez mais,

De início, foi um movimento idealista. Deu grande peso à sua base moral. Não só para convencer o mundo, mas, sobretudo, para dar descanso à própria consciência.


 


Desde a mais tenra infância nos ensinaram sobre os pioneiros, muitos dos quais filhos e filhas de famílias bem postas, de boa educação, que deixaram para trás a vida confortável na Europa, para começar vida nova em terra longínqua e – considerados os padrões do tempo – num país primitivo. Aqui, sob clima difícil, ao qual não estavam habituados, muitas vezes famintos e doentes, entregaram-se a trabalho físico duríssimo, sob um sol brutal.


 


Para tudo isto, tinham de ter fé absoluta na correção de sua causa. E criam, não só na necessidade de salvar os judeus europeus das perseguições e dos pogroms mas, também, no ideal de construir uma sociedade que seria a mais justa que a humanidade jamais vira, uma sociedade igualitária que seria modelo para o mundo todo. Leo Tolstoy não era menos importante para eles do que Theodor Herzl. O kibbutz e o moshav eram símbolos da mesma empreitada.


 


Mas esse movimento idealista implicava colonizar um país habitado. Como superar a contradição entre os ideais sublimes e o fato de que, para realizar o ideal, seria necessário expulsar os que viviam naquela terra?


 


A via mais simples foi apagar o problema, escondê-lo, reprimi-lo, ignorá-lo: a terra, dissemos a nós mesmos, era deserta, ninguém vivia ali. Com essa justificativa, inventamos a ponte que nos ajudou a não ver o abismo moral.


 


Só um dos Pais Fundadores do movimento sionista teve coragem para dar nomes às evidências. Ze'ev Jabotinsky escreveu, há 80 anos, que seria impossível enganar o povo palestino (cuja existência reconhecia) e obter que concordasse com as aspirações sionistas. Somos colonizadores brancos em terra habitada por população nativa, disse ele, e de modo algum os nativos nos aceitarão de boa vontade. Eles resistirão violentamente, como todos os povos nativos de todas as colônias de nações européias. Portanto, precisamos de um “Muro de Ferro” que proteja a empreitada sionista.


 


Quando disseram a Jabotinsky que esse modo de agir era imoral, ele respondeu que os judeus lutavam para salvar-se do desastre que os ameaçava na Europa, e que, portanto, o direito moral dos judeus ultrapassava o direito moral dos árabes na Palestina.


 


Poucos sionistas estavam preparados para aceitar essa abordagem pela força. E muitos passaram a buscar candentemente alguma justificativa moral que lhes permitisse viver.


 


Assim começou a busca por justificativas – um pretexto depois do outro, conforme mudavam as tendências espirituais no mundo.


 


A primeira justificativa foi precisamente aquela da qual Jabotinsky zombara: viemos para ajudar os árabes. Cumpriríamos o dever de redimi-los da vida primitiva que viviam. Tínhamos de salvá-los da ignorância, das doenças. Tínhamos de ensinar-lhes modernos métodos de agricultura e melhor medicina. Tínhamos de dar-lhes tudo… Menos empregos, porque precisávamos de todos os empregos para os judeus que trazíamos para cá, e que estávamos transformando, de judeus de gueto, em operários e agricultores.


 


Quando os árabes mal-agradecidos resistiram ao nosso grande projeto, apesar de todos os benefícios que supostamente lhes oferecíamos, inventamos uma justificativa marxista: os árabes não resistem a nós; só os “effendis” resistem. Os árabes ricos, os proprietários de terras, temiam que o luminoso exemplo da comunidade hebraica igualitária atraísse o proletariado árabe explorado e o levasse a levantar-se contra seus opressores.


 


Isto tampouco funcionou por muito tempo, porque os árabes logo viram que os sionistas compravam as terras daqueles mesmos “effendis” e expulsavam os agricultores que as cultivavam há gerações.


 


O crescimento do nazismo na Europa trouxe levas e levas de judeus para Israel. O público árabe viu que lhe estavam tirando o chão em que pisavam. E levantou-se em rebelião contra os britânicos e os judeus, em 1936. Por quê, perguntaram os árabes, deveriam eles pagar pela perseguição que os europeus moviam contra os judeus?


 


E a Revolta Árabe ofereceu-nos uma nova justificativa: os árabes apoiavam os nazistas. E, sim, o Grande Mufti de Jerusalém, Hajj Amin al-Husseini, foi fotografado sentado ao lado de Hitler. Alguém ‘descobrira’ que o Mufti fora o verdadeiro instigador do Holocausto. (Anos depois, soube-se que Hitler detestava o Mufti, o qual jamais teve qualquer influência sobre os nazistas.)


 


Terminou a 2ª Guerra Mundial, veio a guerra de 1948. O número de refugiados chegou à metade do destroçado povo palestino. Nada disso causou qualquer problema à consciência sionista, porque sabiam: os refugiados fugiram porque quiseram. Os líderes os aconselharam a deixar suas casas, para voltar depois, com os vitoriosos exércitos árabes. Jamais houve qualquer evidência que comprovasse essa idéia absurda, mas essa idéia absurda tem bastado para aliviar nossa consciência, até hoje.


 


Poder-se-ia perguntar: por que os refugiados não puderam voltar para casa, mesmo depois do fim da guerra? Ora… eles mesmos, em 1947, rejeitaram a partilha proposta pelas Nações Unidas e começaram a guerra. Portanto, se perderam 78% do próprio país, a culpa foi deles.   


 


E veio a Guerra Fria. Éramos, é claro, aliados do “Mundo Livre”, e o grande líder árabe, Gamal Abd-al-Nasser, recebia armas do bloco soviético. (A verdade é que, na guerra de 1948, os soviéticos forneciam armas para nós… mas isso não era importante.) Estava tudo bem claro: Nem vale a pena falar com os árabes, porque eles apóiam a tirania comunista.


 


E o bloco soviético entrou em colapso. “Uma organização terrorista chamada OLP”, como Menachem Begin costumava dizer, reconheceu Israel e assinou o tratado de Oslo. Tornou-se indispensável, então, encontrar outro pretexto, porque continuávamos sem devolver ao povo palestino os territórios que continuamos a ocupar.


 


A salvação veio dos EUA: um professor, de nome Samuel Huntington, escreveu um livro sobre um “Choque de Civilizações”.


 


E assim, afinal, encontramos a mãe de todos os pretextos.


 


Segundo essa teoria, o arquiinimigo é o Islã. A civilização ocidental, judeu-cristã, liberal, democrática, tolerante… está sendo atacada pelo monstro islâmico, fanático, terrorista, assassino.


 


O Islã é assassino por natureza. De fato, “muçulmano” e “terrorista” são palavras sinônimas. Todo muçulmano é terrorista e todo terrorista é muçulmano.


 


Alguém mais cético perguntará: Como aconteceu que a maravilhosa civilização ocidental tenha  gerado a Inquisição, os pogroms, a queima de bruxas, a aniquilação das populações nativas de toda a América, o Holocausto, as ‘limpezas’ étnicas e outras inumeráveis atrocidades? Mas… isso passou. Hoje, a civilização ocidental é a encarnação da liberdade e do progresso.


 


O Professor Huntington não pensava especificamente em nós. Sua tarefa era atender a uma urgência específica dos EUA: o império norte-americano sempre precisa ter, bem claro, um inimigo planetário, virtual, um único inimigo que englobe todos os inimigos dos EUA em todo o planeta. Os Comunistas fizeram esse papel – o mundo era dividido entre “os mocinhos” (os norte-americanos e seus aliados) e “os bandidos” (“os vermelhos”, “os comunas”). Quem se opusesse aos interesses norte-americanos virava automaticamente comunista – Nelson Mandela na África do Sul; Salvador Allende no Chile; Fidel Castro em Cuba… ao mesmo tempo em que os líderes do Apartheid, os esquadrões da morte de Augusto Pinochet e a polícia secreta do Xá do Irã eram cidadãos, como nós, do “Mundo Livre”. 


 


Quando o império comunista ruiu, os EUA, de repente, ficaram sem inimigo planetário. Imediatamente, para preencher esse vácuo, inventaram-se os muçulmanos-terroristas. Não só Osama bin Laden, mas também os que lutavam pela liberdade na Chechênia, os jovens e irados norte-africanos dos bairros pobres de Paris, a Guarda Revolucionária Iraniana, os insurgentes nas Filipinas.


 


Assim, a auto-visão de mundo dos EUA reequilibrou-se: um mundo ‘do bem’ (a Civilização Ocidental) e um mundo ‘do mal’ (a Civilização Islâmica). Os diplomatas ainda cuidam de estabelecer diferenças entre “islamitas radicais” e “muçulmanos moderados”, mas só para salvar as aparências. Cá entre nós, é claro que sabemos que são todos Osamas bin Ladens. Todos iguais.


 


Desse modo, parte muito grande do mundo, muitos diferentes povos e países, e uma grande religião, com suas muitas e muitas vezes opostas tendências (como o cristianismo, como o judaísmo), que deu ao mundo tesouros científicos e culturais inigualáveis, são jogados num mesmo saco, como se tudo fosse uma coisa só.


 


Esse tipo de visão de mundo foi construído sob medida para nós. De fato, o mundo de civilizações em choque é, para nós, o melhor dos mundos.


 


A luta entre Israel e os palestinos deixou de ser um conflito entre o movimento sionista, que chegou para ocupar a Palestina, e o povo palestino que aqui já vivia. Não. Desde o início, a luta aqui sempre foi parte de um combate mundial que nada tem a ver com nossas ambições ou com nossos atos. O assalto do Islã terrorista contra o mundo ocidental não começou por causa de Israel. Nossa consciência está livre de qualquer culpa – somos parte do ‘mundo do bem’.


 


Essa é hoje a linha de argumentos oficial de Israel: os palestinos elegeram o Hamas, que é um movimento islamita assassino. (Se não existisse, teria de ser inventado – e há quem diga que, desde o início, foi invenção do serviço secreto israelense.) O Hamas é terrorista. O Hezbolá também. Talvez Mahmoud Abbas não seja, pessoalmente, terrorista, mas é fraco e o Hamas está a um passo de controlar todos os territórios palestinos. Portanto… não se pode conversar com eles. Não temos parceiros. De fato… nem temos nem jamais poderemos ter parceiros, porque somos parte da Civilização Ocidental… que o Islã visa a varrer do mundo.



Em seu livro “O Estado Judeu”, Theodor Herzl, profeta israelense oficial do Estado judeu, previu que as coisas tomariam esse rumo.


 


Em 1896, Herzl escreveu: “Para a Europa, constituiremos (na Palestina) uma parte da muralha que separará a Europa e a Ásia; serviremos como uma vanguarda de cultura contra a barbárie.“


 


Herzl pensava em um muro metafórico. Mas, de lá até hoje, construímos um muro bem real.


 


Para muitos, não é apenas um muro para separar Israel e Palestina. É parte da muralha planetária entre o Ocidente e o Islã, o front entre as civilizações em choque. Além do muro não há homens, mulheres e crianças, não há os palestinos oprimidos, não há cidades destruídas, como Abu-Dis, a-Ram, Bil'in e Qalqilia. Não. Além do muro há um bilhão de terroristas, multidões de muçulmanos sedentos de sangue, com um só desejo na vida: lançar-nos ao mar, apenas porque somos judeus, parte da civilização judaico-cristã.


 


Se essa é a posição oficial… com quem dialogar? Dialogar sobre o quê? Que sentido há em comparecer a reuniões em Annapolis ou onde for?


 


O que mais nos resta fazer? Rir ou chorar?


 


 


*Uri Avnery é um membro fundador do Gush Shalom  (Bloco da Paz israelense). Enquanto adolescente, Avnery foi um combatente independente no Irgun, a resistência judaica armada, e mais tarde soldado no exército israelita. Também foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Avnery foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Durante a guerra no Líbano em 1982, atravessou as linhas inimigas para se encontrar com Iasser Arafat. Tem sido jornalista desde 1947, foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelenses sobre a Palestina, incluindo My Friend, the Enemy e Two People, Two States.


 


Tradução de Caia Fittipaldi.



Original em inglês, em Gush-Shalom, em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1192288533/ .


COPYLEFT. Reprodução autorizada pelo autor e pela tradutora.