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Do sarau da Cooperifa à Semana de Arte Moderna da Periferia

''A periferia, apesar da dura realidade e abandono dos governantes em geral, está dominada pela poesia'', afirma Sérgio Vaz em artigo para o Programa de Democratização Cultural da Votorantim. Exemplo disso é o sarau da Cooperifa, realizado semanalmente

Periferia moderna

 

Por Sérgio Vaz *

 

A periferia, apesar da dura realidade e abandono dos governantes em geral, está dominada pela poesia. Prova disso são os saraus que não param de acontecer nas quebradas de São Paulo. E por conta da poesia e dessa literatura que se alastra pelas ruas, as pessoas mais simples têm se interessado um pouco mais em ter uma vida cultural.

 

Um clássico exemplo é o sarau da Cooperifa, que na ausência de teatros, bibliotecas, livrarias, cinemas, museus e raríssimos espaços para acesso à cultura e arte, transformou um boteco da periferia da maior cidade do país em centro cultural.

 

No bar, há seis anos, todas às quartas-feiras, uma média de 200 pessoas – com picos de até 400 – reúnem-se para ouvir e falar poesia. O sarau é freqüentado por toda comunidade e gente de várias quebradas, inclusive do centro. Os saraus que acontecem na periferia têm se transformado num grande quilombo cultural. Muitos até os denominam de o movimento dos sem-palco.

 

O sarau da Cooperifa é freqüentado por poetas, motoristas de táxi, donas-de-casa, desempregados, professores, crianças, jovens, idosos, jornalistas, mecânicos, motoboys, advogados, estudantes, etc. E muitos deles tinham apenas a televisão como referência cultural. Toda essa gente que nunca havia tocado num livro ou sequer ouvido uma poesia, foi seduzida ali, na porta do bar, pela literatura. Não é de embriagar?

 

E o que é melhor é que boa parte desse povo lindo e inteligente, hoje, já segura seu próprio livro editado nas mãos. A maioria tem seus escritos registrados em CDs e antologias que se alastram pelos becos e vielas da grande metrópole paulistana. Sem contar que, por meio da oralidade, muita gente tem se transformado em intérprete de poesias de autores consagrados. O livro, sempre tratado como o pão do privilégio, chegou na periferia através da palavra. Literalmente no boca-a-boca.

 

Lógico que não se trata de uma literatura melhor que a produzida pelos acadêmicos, mas também não é menos importante. Muitos deles nos acusam de assassinar a gramática e seqüestrar a crase, por isso, é comum ver jovens poetas e escritores sendo enquadrados pelas canetas nervosas dos intelectuais como suspeitos de abusar da palavra alheia.

 

Mas esconder e negar a educação durante 500 anos, também não é crime? Menos vírgulas, mais acentos, mas ainda assim literatura. O difícil foi acordar.

 

Aprender é um verbo que se conjuga em grupo.

 

Falando em aprendizado, nesses seis anos de atividades do sarau da Cooperifa, mais de 30 autores lançaram seus livros. Grupos de teatros como Manicômicos, Ação e Arte, Cavalo de Pau, Irmãos Carozzi, entre outros, encenaram ali, no chão duro, as suas peças.

 

Pessoas com mais de 50 anos que nunca haviam ido a um teatro, assistiram, tomando rabo de galo, a sua primeira peça. Vários documentários produzidos por jovens da região e de cineastas consagrados são freqüentemente exibidos.  Exposições de fotos e artes plásticas, lançamentos de discos e DVDs, tudo o que é produzido pela periferia, está sendo consumido por ela.

 

Hoje na periferia paulistana, por onde quer que você olhe tem alguma coisa acontecendo, e para todos os gostos: Panelafro na Casa de Cultura do M'boi Mirim, Cine becos e vielas, sarau do Binho, Favela toma conta, Quilombagem, Arte na periferia, Samba da vela, Poesia das ruas, Saraus nas escolas, Saraus no acampamento João Cândido (MTST), Biblioteca nas favelas, Um da sul, o rap, o reggae, etc. A gente no centro tinha de tudo e nem se dava conta. Estamos vivendo a nossa Primavera de Praga.

 

Baseado neste momento de luz, a Cooperifa e um grupo de artistas propõe, 85 anos depois, uma nova Semana de Artes, só que agora oriunda da periferia. Uma nova história, escrita e contada por quem realmente vive por ela e para ela. Uma nova versão da Semana, contada não de fora para dentro, mas de dentro para fora. Construída com as mesmas mãos calejadas que construíram a cidade de São Paulo. Uma Semana Cultural criada e produzida com o mesmo suor desse povo que tanto luta por um Brasil melhor.

 

Inspirada na Semana de Arte Moderna de 22, a Cooperifa propõe sacudir o marasmo cultural que se instalou no país. Uma Semana inteira de artes para que a bússola do país, que aponta para o centro, também aponte para a periferia.

 

A idéia da Semana não é somente propor um outro tipo de linguagem, mas também um outro tipo de artista. Um artista mais humano e solidário e uma arte que preze pela estética, mas que também ofereça conteúdo.

 

Um artista formado pelo caráter da sua obra, não forjado em pranchetas de publicitários, em que a mesma música lançada nas rádios pela manhã é a que vende xampu, carro, miojo e cerveja no final da tarde. E de quebra, serve de jingle para campanhas políticas.

 

A Cooperifa, ao produzir a Semana, deseja estimular o interesse pela leitura, a criação poética, o gosto pelo teatro e pelo cinema e aliar-se à escola e universidade para que a cultura seja um elemento primordial para a construção de seres humanos melhores e mais conscientes.

 

Moderno por aqui tem sido ousar e encarar novos desafios. E o medo ficou no período Barroco.

 

* Sérgio Vaz é poeta, fundador da Cooperifa (Cooperação Cultural da Periferia) e idealizador da Semana de Arte Moderna da Periferia

 

Fonte: Programa de Democratização Cultural da Votorantim