A escolha estratégica de dom Aloísio (1924-2007)
Morreu às 5h20 deste domingo (23) em Porto Alegre o cardeal dom Aloísio Lorscheider. Tinha 83 anos e vinha de uma longa luta contra insuficiências cardíacas. “Já estou na prorrogação, o que vier daqui pra frente é lucro”, comentara 18 anos antes, ao in
Publicado 23/12/2007 11:50
Foi um gesto de coragem, que teve seu vértice em 1968, quando dom Aloísio era secretário-geral da CNBB. Deu-se sob pressão dos jovens padres e leigos que abraçavam a Teologia da Libertação, das Comunidades Ecleseais de Base, sob o impacto das denúncias de torturas e das imagens dos cavalos da Polícia Militar galgando as escadarias da Igreja da Candelária, no Rio. Mas foi também um ato político: a estrutura da Igreja ouviu os clamores do povo, dos estudantes e operários que se rebelavam contra o regime militar. Escolheu um lado, e os frutos dessa escolha repercutem até hoje.
Da Marcha com Deus aos Clamores do povo
Quatro anos antes, a Igreja Católica abençoara o golpe de 1964 e se empenhara nele. A Marcha Com Deus pela Liberdade, principal mobilização política em favor dos golpistas, foi convocada em São Paulo como desagravo ao Santo Rosário, supostamente ofendido no comício de 13 de março em favor do presidente João Goulart, com todo apoio da Igreja. Em outros países latino-americanos, como o Chile, a hierarquia católica ficaria até o fim ao lado das ditaduras. No Brasil, não. E o mérito dessa ruptura cabe em grande parte a homens como dom Aloisio, seu irmão dom Ivo, dom Helder Câmara, dom Evaristo Arns.
Nos anos 1970, arcebispo de Fortaleza, dom Aloísio Lorscheider pregou a reforma agrária e assinou junto com outros bispos nordestinos o documento Eu ouvi os clamores do meu povo, de enérgica denúncia das injustiças sociais. Em 1980 apoiou a grande greve dos metalúrgicos do ABC Paulista, que projetaria definitivamente o líder operário Luiz Inácio Lula da Silva.
Não foi uma escolha fácil. Enquanto ocupou a presidência da CNBB, de 1971 a 1979, dom Aloísio sofreu represálias. Recebeu incontáveis ameaças de morte, teve dois cachorros envenenados, uma bomba caseira explodiu no jardim de sua casa, três homens armados tentaram entrar em seu quarto. Essa hostilização soldou sua escolha.
A opção antiditatorial após a ditadura
Fustigada por uma oposição crescente que tinha na Igreja um dos seus pilares, a ditadura entrou na defensiva e em 1985 veio abaixo. Já eram tempos de ofensiva neoliberal no mundo, e em Roma o papa João Paulo II iniciara uma guinada do catolicismo com sentido conservador. No Brasil, a Igreja de dom Aloísio moderou sua ação social e política – mas não mudou de lado.
Essa persistência indica que a escolha dos anos 60 não foi meramente tática, e sim algo mais profundo. É possível que tenha raízes na própria sociologia do catolicismo brasileiro, com seu corpo de sacerdotes não mais formado pelos filhos da classe dominante e sim, principalmente, pelo campesinato independente do sul do país. O próprio dom Aloisio, gaúcho de Estrela (RS), neto de alemães, com seu metro e 95 de altura e seus olhos azuis, era um exemplo dessa mudança.
Entre o católico Lula e o católico Alckmin…
Os desdobramentos da escolha estratégica chegaram até a eleição e a reeleição de Lula, em 2002 e 2006. O governo daí surgido, ao lado dos avanços trouxe também frustrações – que atire a primeira pedra quem não as sentiu. A relação da Igreja com o governo Lula tem sido de altos e baixos. Ainda outro dia a CNBB emprestou apoio à greve do bispo de Barra contra a transposição do Rio São Francisco, um protesto duvidoso, com forte componente regionalista e polêmico dentro do próprio catolicismo.
Mas no ano passado, quando se tratou de escolher entre Lula e Geraldo Alckmin, este um católico praticante porém ligado à sinistra seita ultraconservadora Opus Dei, mais uma vez a Igreja de dom Aloísio soube qual seria o seu lado – e as defecções foram para apoiar a outsider Heloísa Helena. Uma opção com tamanha permanência, em circunstâncias tão acidentadas, merece atenção, respeito, admiração. No momento em que desaparece um dos seus expoentes, o sentimento do Brasil progressista, de todas as crenças e convicções, é uma comovida esperança de que as próximas gerações do catolicismo brasileiro saibam honrar a escolha da geração de Aloísio Lorsheider.
Dom Aloísio faleceu no Hospital São Francisco em Porto Alegre, onde estava internado desde 28 de novembro, com insuficiência cardíaca. Era a sua quarta internação neste ano. Seu corpo será velado na Catedral de Porto Alegre e o sepultamento será no Convento de Daltro Filho a 130 km da capital gaúcha, em dia e hora ainda em aberto.