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Comissão de Anistia julga 55 casos de camponeses de Goiás

A Comissão de Anistia deu mais um passo importante no sentido de levar a Justiça aos camponeses e militantes políticos. No último dia 13 de dezembro, 55 casos de Trombas e Formoso, Pontalina, Uruaçu e Carmo do Rio Verde, em Goiás, foram analisados pelo

Em meio aos requerimentos julgados, estavam casos como os de Nativo da Natividade e Sebastião da Paz, importantes lideranças mortas em conflitos agrários, além de vir à tona a lembrança de José Porfírio de Souza e sua família, que ousaram desafiar o poder dos latifundiários a partir de meados dos anos 50, quando Trombas e Formoso ainda eram uma só cidade.


 


Apesar da contundência dos relatos prestados e da necessidade justa de reparação aos que lutaram pelo direito à terra, muitos casos foram indeferidos. A razão central é que a Lei da Anistia (10.559/02) acaba impedindo a indenização aos camponeses uma vez que exige a comprovação de vínculo trabalhista e de prejuízo ao indivíduo por conta da perseguição política.


 


Mas atrelado a isso está também o fato de que a perseguição julgada deve ter sido comprovadamente exercida pelo Estado brasileiro. Esse conjunto de fatores dificulta a atuação da Comissão e muitas vezes coloca em trincheiras opostas conselheiros e procuradores dos requerentes, que no fundo estão do mesmo lado. “A Lei de Anistia tem uma série de defeitos. Apesar das limitações, conseguimos resolver aqueles casos que se encaixam na lei. Outro problema concreto é que não temos como aferir as perdas que aqueles camponeses tiveram”, explica o advogado Egmar José de Oliveira, um dos membros da Comissão.


 


O conflito ficou patente na sessão. Se por um lado o grupo de sete conselheiros liderados pelo presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, buscava atender às demandas dos requerentes dentro das exigências que a legislação impõe, de outro lado procuradores de intenção algumas vezes duvidosas procuravam reverter a sentença, partindo para a desqualificação do julgamento.



 


Nativo da Natividade


Um dos casos que causaram polêmica entre procuradores e comissão foi o indeferimento do pedido de anistia post mortem para Nativo da Natividade, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carmo do Rio Verde entre 1982 e 1985 e um dos principais líderes rurais da região. O requerimento, formulado por sua viúva Maria de Fátima Marinelli, buscava a anistia política e indenização alegando que fora um perseguido político.


 


Natividade teria iniciado sua militância nos anos 70 e mais tarde aproximou-se das Comunidades Eclesiais de Base que atuavam no estado. Por seu trabalho, o líder rural comprou briga com os poderosos latifundiários da região, representados pela União Democrática Ruralista. Jurado de morte pela direita, Natividade chegou a ser preso em 1984. Pouco mais de um ano depois, foi morto em 23 de outubro de 1985, com cinco tiros, em frente ao sindicato que presidia. O motivo central era o temor de que o líder se candidatasse à prefeitura de Carmo do Rio Verde, uma ameaça aos interesses dos senhores da região.


 


Para Maria de Fátima Marinelli, o crime foi articulado “a partir dos porões do regime militar que se exauria durante a transição”. Em dezembro de 1985, o pistoleiro João José Magalhães confessou o assassinato, com a ajuda de Francisco Diogo de Oliveira, a mando do então prefeito Roberto Pascoal Liégio; do advogado Geraldo Reis; do fazendeiro Genésio Pereira da Silva e de João Laia, ex-presidente do sindicato. O processo penal não foi concluído e os acusados não foram enquadrados.


 


O caso ficou impune, carecendo ainda de uma resposta adequada da Justiça. Porém, dada a descrição do caso e a documentação anexada, não foi possível incluir o caso de Nativo da Natividade na Lei de Anistia. “É bem verdade que toda luta agrária possui um caráter de fundo social – cujas batalhas travadas giram em torno da melhoria das condições de trabalho no campo, reforma agrária, justa distribuição de renda – por isso mesmo os registros nos órgãos oficiais de repressão; afinal, grupos como esse, representavam uma iminente ameaça ao governo militar. Contudo, deparamo-nos aqui com um caso claro de disputa por terras levado à última conseqüência: o assassinato do líder da região, “por encomenda” do prefeito e dos latifundiários locais”, diz o voto acolhido por unanimidade pelos conselheiros.


 


Sebastião Rosa da Paz


Outro exemplo de injustiça no campo, mas que não pôde ser aceito pelos conselheiros foi o do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Uruaçu, Sebastião Rosa da Paz, em 28 de agosto de 1984. O caso foi encaminhado à Comissão de Anistia pela esposa Izaura de Souza Paz, que iniciou a militância local contra o latifúndio ao lado do marido e de outras lideranças, como o próprio Nativo da Natividade, nos anos 70. Segundo seu depoimento ao órgão, a repressão passou a vê-la como “comunista, terrorista, revolucionária e subversiva”, o que a teria levado a sair com Rosa da Paz de Ceres, onde viviam, para Uruaçu, em Goiás. Lá, o casal ajudou a construir o Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade.


 


Segundo Izaura, a perseguição continuou até que em 1984 seu marido foi assassinado por pistoleiros em sua própria casa, quando faltava luz na cidade, e ela mesma, além da filha, teriam também sido vítimas de tentativa de homicídio. Ainda nos autos consta declaração de Izaura de que a menina, então com 13 anos, conseguira reconhecer os assassinos do pai, mas a reconstituição do crime fora propositadamente prejudicada, assim como a autópsia.


 


Em 1985, foi identificado o pistoleiro Alvir José Farias como autor do crime, sob o comando dos fazendeiros Ireno de Oliveira Nunes, Vadjou Quintino Moreira e José Alves de Oliveira. A revelação dos nomes, conforme o relatório da Comissão de Anistia, foi feita pelo então Secretário de Segurança Pública do Estado de Goiás, Frederico Jayme e acompanhada pela FETAG, Comissão Justiça e Paz, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Comitê Sebastião Rosa da Paz, numa coletiva de imprensa. O motivo do assassinato teria sido uma orientação de Sebastião ao lavrador Antônio de Oliveira no sentido de não sair das terras do fazendeiro Vadjou Moreira. Até hoje, não houve punição para os assassinos. Izaura alegou que por conta dos trágicos acontecimentos, teve transtornos neurológicos e psicológicos.


 


Da mesma maneira, o caso teve de ser indeferido porque, segundo relatório da Comissão, “dos fatos narrados e documentação carreada aos autos, percebe-se que se trata, no caso em deslinde, de questão agrária, cujo cerne encontra-se dissociado do tema da motivação exclusivamente política presente na Lei n.º 10.559, de 13.11.2002”.


 


Reação


Casos como estes exemplificam o engessamento que a lei impõe aos membros da Comissão de Anistia, o que coloca cada um dos conselheiros em situação delicada. Motivados por razões nobres como a defesa dos direitos de seus representados ou pelos honorários de 30% sobre a causa ganha, os procuradores acabam reagindo quando do indeferimento por vezes até de maneira agressiva. Um deles foi Valdomiro Batista, que se disse procurador de dezenas de casos julgados naquele 13 de dezembro. Sua voz se fez presente desde o primeiro caso julgado até um dos últimos.


 


Num acesso de raiva, Batista chegou a acusar a Comissão de falta de isonomia nos julgamentos, o que segundo ele teria levado ao deferimento de casos como o de Luiz Inácio Lula da Silva e ao indeferimento de Nativo da Natividade. Ele atribuiu tal diferença à posição alcançada pelo ex-torneiro mecânico que virou presidente. Chegou ainda a declarar que organizações políticas como PCdoB, PCB e VAR-Palmares “colocavam os lavradores na frente para morrer e hoje se locupletam das benesses do poder. O companheiro Lula fez greve por melhores salário e foi anistiado!”, indignou-se.


 


“Opiniões como essa não expressa o conjunto das pessoas que recorrem à Comissão de Anistia. E considero como ato de ingratidão não só com a Comissão, mas com o governo Lula, que garantiu uma dinâmica muito maior aos julgamentos, o que não acontecia na era FHC”, disse o conselheiro Egmar José de Oliveira. “Vejo essa agressividade mais como uma tentativa de nos intimidar. E a própria Comissão reconhece o valoroso papel dos comunistas em episódios como, por exemplo, o de Trombas e Formoso. Inclusive muitos dos anistiados são comunistas porque foram efetivamente perseguidos pelo Estado”, completou.


 


Por outro lado, o procurador Altino Barros, do grupo Tortura Nunca Mais de Goiânia, alegou que as lutas agrárias sempre foram políticas. Numa tentativa de esclarecer as diferenças entre os casos deferidos e indeferidos, o presidente da Comissão, Paulo Abrão, explicou: “Não basta comprovar que a pessoa teve uma vida política para receber a anistia. A lei garante a indenização daqueles que foram perseguidos políticos pelo Estado brasileiro. Muitas vezes a gente se depara com pessoas que tiveram uma militância política, mas que não consegue comprovar que a ação do Estado brasileiro foi determinante na perseguição que aquela pessoa sofreu. Esta é a nossa dificuldade”.


 


No que diz respeito ao caso de anistia ao presidente, Abrão ressaltou que Lula “não foi anistiado simplesmente porque foi um militante político, mas porque foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Ele foi preso por isso, o que configurava a perseguição política vinda pelas mãos do próprio Estado brasileiro. No caso em questão [Nativo da Natividade], tudo nos mostra que evidentemente foi um crime político, mas a ação do Estado não está posta”.


 


Já Luciana Garcia, outra das conselheiras e advogada de trabalhadores rurais, disse ter consciência da “limitação que o Estado brasileiro tem em reconhecer e reparar o assassinato de Nativo e de Sebastião. Há sim responsabilidade do Estado brasileiro porque a reforma agrária não foi feita. A luta que ocasionou tais assassinatos decorre da extrema diferença de classes que existe neste país, do latifúndio que continua matando”. Porém, lamentou, “tenho que respeitar a lei que trata do tema”.


 



Trombas e Formoso


Dos casos julgados, 47 diziam respeito ao episódio de Trombas e Formoso. Mas a grande maioria teve de ser rejeitada. “Há duas causas principais para o indeferimento destes requerimentos. Um deles é o fato de solicitar anistia a filhos de pessoas que estiveram em Trombas e Formoso. E pela lei, os filhos não têm direito, a não ser quando sofrem diretamente pela perseguição. Outro fator é a falta de comprovação da motivação política”, explicou Egmar de Oliveira.


 


Um dos episódios mais famosos de resistência e reação aos desmandos do latifúndio foi o de Trombas e Formoso, cidades vizinhas que viveram a partir dos anos 50 um período de efervescência da luta dos camponeses pelo direito à terra. Uma onda de migração tomou conta da região a partir de 1948. Com isso, posseiros passaram a ocupar a região e trabalhar nela, o que acabou por chamar atenção de grileiros que passaram a tentar tomar as terras dos lavradores por meio de manobras judiciais.


 


Entre os homens que escreveram a história das lutas agrárias no Brasil está o José Porfírio de Souza e sua família. Instalados na região a partir de 1949, se integraram e passaram a liderar o movimento em prol dos camponeses. Após um período de tentativa de diálogo com os grileiros e latifundiários interessados em expulsar os trabalhadores de suas terras, chegam em 1954 a Trombas e Formoso os primeiros quadros do Partido Comunista do Brasil, então sob a sigla PCB, dentre os quais Geraldo Tibúrcio, Geraldo Marques, José Ribeiro e João Soares. O objetivo era ajudar os camponeses na organização do movimento de resistência às investidas dos poderosos.


 


Em 1955, mais de 50 famílias foram expulsas de suas terras. E a partir de 1956 a polícia começou a prender e torturar qualquer camponês que encontrava na região, sem que houvesse um motivo aparente. Os grileiros atuavam com apoio contínuo da polícia, com o propósito de desmoralizar os posseiros. Eram 2 mil camponeses que lutaram contra a grilagem e a polícia, que teve de se retirar da região após conflito.


 


A trajetória de Porfírio fez dele o primeiro deputado estadual de origem camponesa do Brasil, eleito em 1962. Mas, com o golpe militar de 1964, teve de abrir mão de seu mandato e de sua terra. Com outros companheiros do movimento, foi preso em 1971. Está desaparecido desde 1973 quando, depois de torturado e libertado, sumiu sem deixar vestígios.


 


Seu Veridiano Porfírio de Souza, de 85 anos, irmão de José Porfírio e camponês militante em Trombas e Formoso, quase não consegue mais falar e tem dificuldades de andar, mas compareceu ao julgamento que lhe conferiu a condição de anistiado político e assegurou a indenização financeira correspondente ao tempo de perseguição.


 


Outro requerimento, que serviu como relatório-guia para outros pedidos de anistia, foi o de Joana Pereira Marinho, viúva da Raimundo Pereira Marinho. Conforme os autos, Marinho era membro do Comitê Zonal do PCB e da Associação dos Posseiros de Trombas e Formoso, entre 1950 e 1964, ano em que teve de fugir de sua casa por conta do golpe militar.


 


Segundo o requerimento, “conforme se verifica dos registros dos órgãos oficiais (Agência Brasileira de Inteligência e Departamento de Polícia Federal) constantes nos autos, o falecido foi implicado na atuação de grupos de extrema esquerda presentes nos municípios de conflito. Alguns figuraram como detidos pela Polícia Militar do Estado de Goiás à época, tendo sido investigados por militarem em organizações de caráter “subversivo”. E completa: “dessa forma, embora a questão fosse permeada por conflitos agrários, nota-se que a motivação político-ideológica guiou a repressão aos seguidores do movimento social nascido na região”.


 



*enviada a Brasília, com informações da Comissão de Anistia