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Uri Avnery: 'A síndrome de Beilin'

Mefistófeles, o demônio que comprou a alma de Fausto, no monumental drama de Goethe, descreve-se, ele mesmo, como “uma parte daquela força que sempre deseja o mal e sempre cria o bem.”


 


Yossi Beilin, que renunciou esta semana à pr

Os “blocos das colônias” são bom exemplo disto. O próprio Beilin criou esta expressão há uma dúzia de anos. A expressão estava incluída no entendimento não-oficial que se tornou conhecido como o “Acordo Beilin-Abu-Mazen”.


 


A intenção era boa. Beilin acreditava que, se muitos colonos israelenses se concentrassem em pontos próximos da Linha Verde, os demais colonos aceitariam mais facilmente a idéia de não ocupar os demais territórios da Cisjordânia.


 


De fato, o resultado foi um desastre. O governo e os colonos saltaram famintos sobre a possibilidade de construir colônias. A autorização pelo “movimento sionista pró paz” foi tomada como um certificado Kosher, destes que se vêem nas paredes de açougues que vendem carne de porco. Os blocos brotaram em alta velocidade e converteram-se em cidades, como Ma'aleh Adumim, o Bloco Etzion e Modi'in Illit.


 


Por dezenas de anos, os EUA insistiram que as colônias violavam a lei internacional. Mas a aprovação prévia, assegurada aos “blocos das colônias”, permitiu que o presidente George W. Bush mudasse esta atitude e aprovasse os “centros populacionais” de israelenses nos territórios ocupados. Haim Ramon, que foi, no passado, parceiro de Beilin no grupo dos “oito pombos”, integrado ao Partido Trabalhista, foi mais longe: começou a construção do “Muro de Separação” que, na prática, anexa a Israel os “blocos das colônias”.


 


A brilhante idéia de Beilin em nada diminuiu a determinação dos colonos de ocuparem também os demais territórios da Cisjordânia. Ao contrário: eles continuaram a impedir, pela força, o desmonte dos postos avançados, por menor que fosse o posto. A idéia não gerou qualquer bom fruto. O resultado foi o pior possível.


 


 


Podem-se enumerar várias destas brilhantes idéias de Beilin. Como na canção do ex-comediante (e atual rabino ortodoxo) Uri Zohar: “A criatividade judia cria patentes.” Nas arenas política e diplomática, não há cabeça mais fértil que a de Beilin.


 


Não sei exatamente que papel Beilin desempenhou na criação das patentes que foram apresentadas na conferência de Camp David, em 2000. Por exemplo: a idéia de que Israel deveria exigir o controle sobre o Monte do Templo, mas só abaixo da superfície. Não resolveu o problema legal, para o Direito israelense, e aterrorizou os palestinos, que passaram a temer que Israel minasse as fundações dos prédios sagrados do islamismo, até que os prédios desabassem, de modo a poderem construir, então, no mesmo local, o Terceiro Templo Judeu. Em seguida, foi a “visita” de Ariel Sharon a este local sensível, que serviu como gatilho para a eclosão da segunda intifada.


 


Depois das eleições de 2006, Beilin teve outra brilhante idéia: convidar Avigdor Liberman para um muito divulgado café-da-manhã. A intenção era boa, é claro (embora eu não consiga entender que intenção fosse), mas o resultado foi uma catástrofe: deu a Liberman um atestado Kosher de “esquerdista”, que permitiu que Ehud Olmert o incluísse em seu governo.


 


Depois, o Partido Meretz anunciou que não, de modo algum, não, não participaria do governo, se Liberman lá estivesse. Mas não se pode devolver o bebê de Rosemary à barriga da mãe. Liberman ficou no poder; o Meretz continua fora.


 


Agora, Olmert explica aos norte-americanos que não pode destruir nenhum dos postos nas colônias, nem pode negociar as “questões-chave” do conflito, porque isto desmontaria seu governo de coalizão.


 


De fato, Beilin demonstra muita generosidade ao distribuir certificados Kosher a políticos da extrema direita. Na véspera de uma das manifestações de massa da “Esquerda sionista”, na homenagem a Yitzhak Rabin, Beilin anunciou que estava disposto a subir ao mesmo palanque, ao lado do líder da extremíssima direita, o General Effi Eytam. Por sorte dele, não subiu. 


 


Deve haver alguma conexão entre estas idéias e o modo como Beilin se comporta nos momentos críticos. Por exemplo: apoiou o Plano de Separação de Ariel Sharon, sem impor, como condição necessária, que se fizesse um acordo com os palestinos. Resultado: a Faixa de Ghazaa tornou-se “a maior prisão do mundo”.


 


Pior: o decidido apoio de Beilin à II Guerra do Líbano, no estágio inicial e mais crítico. Durante a guerra, propôs também um ataque à Síria. Só na quarta semana, depois de uma dezena de enormes manifestações contra a  guerra, foi que Beilin começou a criticar a guerra e o Meretz organizou sua própria manifestação de protesto.


 


 


No outro prato da balança, estão duas importantes contribuições de Beilin: para a Declaração de Princípios, de Oslo, e para a Iniciativa de Genebra.


 


Sua contribuição para o Acordo de Oslo foi sem dúvida importante. Mas Beilin não soube evitar dois buracos negros que há no acordo: a omissão de duas palavras cruciais: “Estado Palestino”; e a falta da expressa proibição de que prosseguissem as construções nas colônias.


 


Essas duas falhas enterraram o acordo. As negociações para um acordo de paz permanente, que deveriam ter sido concluídas em 1999, sequer foram iniciadas. As colônias continuaram a crescer rapidamente, enquanto todos discursavam sobre a paz.


 


A Iniciativa de Genebra, por outro lado, foi completamente criação de Beilin. Poderia ter coroado sua carreira. Começou como um evento internacional. Os Grandes da Terra cobriram-na com suas bênçãos. Tudo sugeria que daria impulso decisivo ao processo de paz.


 


Nada aconteceu. Com um golpe de mão, Ariel Sharon apagou Genebra, na mesa de negociações: anunciou que a construção do Muro de Separação tirara Genebra do foco de atenção nacional e internacional.


 


As coisas não tinham de continuar neste pé. Este não precisava ter sido o fim da Iniciativa. Poderia ter havido um movimento sustentado, em Israel e em todo o mundo, incansável, até repor a Iniciativa de Genebra, novamente, na agenda. Foi então, porém, que Beilin cometeu o maior erro de sua vida: concorreu à presidência do partido Meretz – e venceu.


 


 


O erro esteve claro desde o primeiro instante: há uma contradição básica entre ser presidente de um partido e ser o Profeta de Genebra, alguém completamente identificado com a Iniciativa e seu principal porta-voz, localmente e em todo o mundo.


 


Quando o Inventor de Genebra tornou-se líder do Partido Meretz, ele ‘encolheu’ a Iniciativa, até fazê-la caber na plataforma política de um pequeno partido. E, ao mesmo tempo, ‘encolheu’ também o Partido Meretz, tornando-o partido de uma só causa. Os dois lados perderam: a Iniciativa perdeu e o Partido Meretz perdeu.


 


Homem inteligente, Beilin deveria ter entendido este processo. Mas suspeito que, nele, haja duas almas que disputam a cabeça: a alma de um homem de idéias e a alma de um militante partidário. Nenhuma das duas funções o satisfaz. 


 


O erro custou muito caro. Esta semana, Beilin foi obrigado a renunciar à presidência do Partido Meretz.


 


Há algo misterioso, neste partido: o Meretz devora seus líderes, um depois do outro. Primeiro, foi a mãe-fundadora, Shulamit Aloni, praticamente varrida de lá. Em seguida, o homem que a varreu de lá, Yossi Sarid, foi também obrigado a renunciar, quando o partido perdeu seis das 12 cadeiras que tinha no Parlamento, caindo da categoria de partido médio, para a categoria de partido pequeno. Depois das últimas eleições, já presidido por Beilin, perdeu mais uma cadeira.


 


Sob a liderança de Beilin, a facção Meretz foi um pássaro bem estranho: nem era partido de oposição, nem estava no governo de coalizão. Beilin foi criado como parte do establishment, e só sabe pensar como establishment, mesmo que, formalmente, esteja na oposição. O Meretz liderado por Beilin não apoiou apenas o Plano de Separação de Sharon e a Guerra do Líbano, de Olmert; ele também, desde o início, flerta abertamente com o Primeiro Ministro. E, no momento em que a grande maioria do país chegou à conclusão de que Olmert não é o homem mais indicado para a função… Beilin lhe outorga um certificado Kosher.


 


Diz que crê que Olmert deseje sinceramente a paz. Cita, com aprovação, falas do Novo Olmert: “Meu pai estava errado e Ben-Gurion estava certo” (o pai de Olmert foi soldado do Irgun) e, também, que “Israel está perdido” se não implementar a Solução dos Dois Estados. São frases que soam bem. O problema é que Olmert caminha na direção oposta do que diz, rejeita qualquer negociação séria sobre a paz e faz a guerra em Ghazaa.


 


Quando um partido expele o presidente, a cena é sempre triste. Mas não é a primeira vez, no caso de Beilin, o que obriga a refletir sobre questões mais sérias.


 


Beilin cresceu, desde jovem, no Partido Trabalhista e foi um dos meninos-prodígio mais promissores, de Shimon Peres. Como Ministro dos Negócios Exteriores, teve oportunidade de dar vazão à sua incansável criatividade. Então, Ehud Barak assumiu o poder – ele e uma inacreditável competência para pôr o homem errado no lugar errado. Beilin foi nomeado Ministro da Justiça, encargo que paralisou seus melhores talentos.


 


Às vésperas de eleições então próximas, o Partido Trabalhista baniu Beilin para o fundo de sua lista eleitoral. Furioso e frustrado, ele abandonou os trabalhistas, bateu a porta ao sair e alistou-se no Meretz. Agora, está sendo praticamente expulso de lá.


 


Ao contrário de Shulamit Aloni e Yossi Sarid, Beilin não dá sinais de estar interessado em “ir para casa”. Seu cérebro fértil já arquiteta novos planos. Em entrevista recente, profetizou uma mudança radical na paisagem política, e a criação de um novo grupo, que reuniria membros dos partidos Kadima, Trabalhista e Meretz. Parece imaginar que este grupo seria liderado por Olmert, com ele, Beilin, em posição de destaque. Terá de derrotar Benjamin Netanyahu e Ehud Barak.


 


A idéia é interessante, mas as chances de sucesso tendem ao zero.


 


Os problemas de Beilin ultrapassam sua história pessoal. Estes problemas sintetizam a tragédia do campo autodenominado “Esquerda sionista”. É bastante provável que o problema esteja, mesmo, no nome.


 


A “Esquerda sionista” nasceu há 100 anos, e parece que jamais fez qualquer autocrítica real. Em sua mais recente entrevista, Beilin usou toda a terminologia do establishment  sionista. Como todos os sionistas, chama de “terroristas” os combatentes palestinos que resistem em Ghazaa. Em sua escala de valores, “é importante que os meninos aprendam a ser soldados valorosos”. E, é claro: “Se Israel deixar de ser Estado Judeu, deixará de me interessar”.


 


Com estas idéias, o campo sionista pró paz não será uma força política importante, não fará oposição às veras, não contribuirá para qualquer mudança positiva no país. E isto é mais do que algum problema pessoal de Yossi Beilin.


    


 


 


Uri Avnery é um membro fundador do Gush Shalom  (Bloco da Paz israelense). Enquanto adolescente, Avnery foi um combatente independente no Irgun, a resistência judaica armada, e mais tarde soldado no exército israelita. Também foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Avnery foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Durante a guerra no Líbano em 1982, atravessou as linhas inimigas para se encontrar com Iasser Arafat. Tem sido jornalista desde 1947, foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelenses sobre a Palestina, incluindo My Friend, the Enemy e Two People, Two States.


 


Copyleft. Tradução de Caia Fittipaldi do original The Beilin Syndrom em Gush Shalom, em http://zope.gush-shalom.org/index_en.html. Reprodução autorizada pelo autor e pela tradutora.


[1] Para saber mais sobre o Partido Meretz, ver http://en.wikipedia.org/wiki/Meretz-Yachad.