Da crise das hipotecas imobiliárias à recessão econômica
Se a recessão econômica bate às portas nos Estados Unidos, como fica a situação do Brasil? Em artigo para o Vermelho, Dilermando Toni, membro do Comitê Central do PCdoB, pondera que, diante das mudanças no cenário internacional, a situaçã
Publicado 23/01/2008 21:30
Estados Unidos: da crise das hipotecas imobiliárias à recessão econômica
Por Dilermando Toni
1) O agravamento da crise econômica com epicentro nos Estados Unidos
Em agosto de 2007, desencadeou-se no mercado imobiliário norte-americano uma grave crise que ficou conhecida com a crise dos subprime. Naquela ocasião, não se podia ainda afirmar seriamente a iminência de uma recessão(1). Porém, nós sempre alertamos para esta possibilidade e paulatinamente constatamos sua aproximação. Agora a recessão deixa de ser uma perspectiva para ser um problema posto no horizonte imediato nos Estados Unidos.
A crise imobiliária apareceu, como as crises capitalistas tradicionais, mesclada no entanto com as características da financeirização atual – ou seja, a partir do auge de produção e consumo do mercado imobiliário, um processo alucinante de construções, financiamentos/endividamentos/especulações e vendas de milhões imóveis residenciais e comerciais(2). Preços em alta, juros baixos e alto risco constituíam-se no tempero da farra. Em linguagem mais atual, uma bolha que foi se inflando até que, em determinado momento, explodiu trazendo prejuízos, quebradeiras, etc.
Por isso, constatamos se tratar de uma crise de superprodução de imóveis, imbricada com a crise financeira onde rebate a especulação com as hipotecas imobiliárias e seus derivativos. Como se diz, a “imagem do espelho”, na qual o setor financeiro vê refletidos os problemas da economia real – e esta, por sua vez, vê refletidos os problemas do mercado financeiro, tais como empréstimos sem garantias confiáveis(3).
Nestes cinco a seis meses a partir de agosto de 2007, o mercado imobiliário dos Estados Unidos passou a se retrair, os preços dos imóveis caíram, o volume de construções novas foi constantemente diminuindo. A inadimplência cresceu – cerca de 2 milhões de norte-americanos que tomaram empréstimos classificados como subprime estão em dificuldades para pagar suas hipotecas. O crédito ficou mais apertado e o consumo se retraiu.
As construtoras passaram a contabilizar prejuízos de monta. As repercussões no mercado financeiro – bancos, fundos de investimento e outros instrumentos de financiamento e especulação – foram então inevitáveis. Tudo isto apesar das intervenções do FED (Banco Central dos Estados Unidos) e de outros BCs mundo afora. A crise imobiliária está dando lugar a uma recessão econômica nos Estados Unidos com repercussões maiores ou menores em todo o mundo.
Neste começo de ano o sinal mais visível da crise está nas grandes perdas no mercado acionário com quedas acentuadas nas principais bolsas de valores do mundo, Ásia, Europa, América do Norte e do Sul. O nervosismo da turbulência é substituído pelo pânico.
Alguns indicadores relativos à economia dos Estados Unidos ajudam a ilustrar a situação, mostrando sua abrangência e profundidade: índice de desemprego e de inflação em alta. Os preços no atacado subiram 6,3% em 2007. Prejuízos dos bancos, Citibank e Merrill Lynch de aproximadamente US$ 10 bilhões, cada um, no quarto trimestre do ano passado. Queda significativa nas taxas de lucro do JP Morgan e do Bank of América.
Os prejuízos do sistema financeiro já anunciados se situam na casa dos US$ 100 bilhões. O mercado doméstico de veículos está estagnado. É um importante setor da economia dos Estados Unidos – são 16 milhões de veículos por ano. Há o enfraquecimento constante do dólar frente a outras moedas, mundo afora.
A agravar toda esta situação se impõe o problema dos preços do petróleo, produto do qual os Estados Unidos são os maiores consumidores mundiais, que se situam perto dos US$ 100 o barril. Quanto ao assim chamado mundo desenvolvido, a Europa apresenta níveis de crescimento sofríveis. No Japão, revêem-se as expectativas, que se situam agora pouco acima do 1% para o ano de 2008.
O desempenho da parte da economia mundial relativo aos países de capitalismo desenvolvido deve ficar em patamar muito baixo – algo como uma estagnação cíclica. A crise atual difere das de 1991 e 2001, brandas e rápidas. A atual tem também epicentro nos Estados Unidos e se revela mais grave do que poderia parecer.
Alguns economistas conservadores de destaque nos Estados Unidos, entre os quais Kenneth Rogoff (de Harvard, ex-FMI) chegam a dizer “que a crise atual parece ser pelo menos tão ruim quanto as cinco crises financeiras mais catastróficas que atingiram países industrializados desde a Segunda Guerra Mundial”(4). Do ponto de vista financeiro, especificamente, algo muito mais sério que o estouro da bolha do mercado Nasdaq ou dos efeitos provocados pelos escândalos da Enron e da Worldcom. Suas repercussões se fazem sentir por todo o mundo.
A resultante mais geral, de um lado – com o atual nível de embricamento econômico e financeiro prevalecente no mundo – são abalos e instabilidades sobre a economia mundial como um todo, impossíveis de se evitar a partir da crise numa economia de aproximadamente US$ 15 trilhões.
De outro lado, porém, há hoje uma situação diferente, de menor dependência da periferia em relação às potências de capitalismo desenvolvido. Uma situação mais favorável, baseada na emergência de outros pólos dinâmicos, a partir da periferia, base da tendência à multipolaridade. A débâcle da economia dos Estados Unidos cria dificuldades, mas não levaria a todos para o buraco.
Por sinal, é necessário o registro de que os fundos de riqueza soberana (SWF, sigla em inglês) dos países emergentes – particularmente dos produtores de petróleo – têm aproveitado o momento de baixa do mercado acionário para comprar ativos em todo o mundo. Este assunto é tratado longamente em matéria de capa da revista The Economist, e também por Emily Thornton e Stanley Reed, na BusinessWeek/Valor, em edições recentes(5).
Enfim, a partir da gravidade com se apresente a recessão nos Estados Unidos, pode se desenhar para 2008 um quadro sui generis, de estagnação e endividamento, dependência de energia e matérias-primas, no centro capitalista [que Belluzzo chama de “ricos submergentes”(6)]; e de algum dinamismo e crescimento, liquidez e posição credora (reservas internacionais em moeda forte ou títulos), reservas energéticas e de matérias-primas, em parte significativa da periferia.
Avalia-se que atualmente os chamados emergentes já respondem por cerca de dois terços do crescimento mundial. A China joga um papel fundamental nesta nova arquitetura, favorável aos países em desenvolvimento e a seus povos.
2) Que medidas estão sendo providenciadas nos Estados Unidos?
A discussão em torno da recessão, de como enfrentá-la, tomou conta da vida política dos Estados Unidos, envolvendo o governo Bush e o Federal Reserve. Passou a polarizar a disputa dos candidatos à Presidência da República dos Estados Unidos. Envolve igualmente a intelectualidade acadêmica.
Bush, na segunda-feira, dia 21, anunciou um pacote fiscal com cortes de US$ 140 bilhões a US$ 150 bilhões (1% do PIB). Esse anúncio aparentemente agravou ainda mais o nervosismo do mercado financeiro. Foi considerado um equívoco por economistas como J. Stiglitz, para quem “os problemas nos Estados Unidos começaram com os cortes fiscais” e as reduções fiscais “vão fazer com que os problemas dos Estados Unidos sejam piores”.
O Federal Reserve, de forma surpreendente, fora do prazo previsto, reduziu na terça-feira 22 a taxa de juros básica em 0,75% (de 4,25% ao ano para 3,5% ao ano), buscando estímulos à retomada do consumo. Frente à inflação prevista para 2008, a taxa de juros reais já é nula ou mesmo negativa.
Além de medidas fiscais e monetárias, todas muito discutíveis, os problemas se põem noutra esfera. Trata-se de uma economia que, apesar de ser de longe a maior do mundo, perde tendencialmente força, empuxo.
São problemas relativos ao parasitismo imperialista e ao crescimento do consumo/endividamento das famílias, possíveis com as vantagens da dominação seu mercado financeiro e de sua moeda que ainda domina o padrão monetário vigente no mundo. Da forma como se desenvolve a dinâmica do capitalismo financeirizado – relações Estados Unidos/Ásia (China) -, de perda significativa do poder da indústria americana, dos gigantescos déficits externo e fiscal e assim por diante.
3) As repercussões no Brasil
O governo brasileiro, seja através de seu ministro da Fazenda, Guido Mantega, ou através do presidente Lula, tem reiterado a condição favorável pela qual passa a economia do país e de sua menor vulnerabilidade diante da situação vivida pelos Estados Unidos.
Com efeito, essa opinião tem algum fundamento. A economia brasileira fechou o ano de 2007 em situação de relativa estabilidade que encerra, entretanto, um quadro contraditório, híbrido como demonstram os números abaixo.
Do lado positivo:
– PIB/2007 alguns décimos acima dos 5% – algo em torno de US$ 1,3 trilhão;
– investimento 13% maior em relação ao ano anterior;
– inflação de 4,5% no centro da meta estabelecida;
– reservas internacionais próximas a US$ 180 bilhões;
– expansão da massa real de salários de 5,4%;
– superávit comercial de cerca de US$ 40 bilhões, apesar da valorização do câmbio, por causa do aquecimento da demanda global (chinesa particularmente), que tem propiciado a elevação dos preços das commodities;
– investimentos estrangeiros recebidos de US$ 36 bilhões.
Do lado negativo:
– juros básicos/Selic média de 11,9% no ano que passou – taxa de juros reais entre as mais altos do mundo;
– dívida pública líquida de 43% do PIB;
– carga tributária de 36% do PIB;
– superávit primário de 4% do PIB;
– taxa média de desemprego de 9,2% da PEA (População Economicamente Ativa);
– câmbio em constante valorização, variando mais recentemente de R$ 1,75 a R$ 1,8 por dólar;
– volumosa circulação de capitais estrangeiros especulativos, sem controle por parte da autoridade monetária.
Os rumos que vai tomando o Brasil nestes cinco anos de governo Lula exigem, porém uma análise mais aprofundada. Uma análise que fuja aos extremos onde se posicionam, de um lado, aqueles para os quais o país atravessa um novo ciclo de desenvolvimento com distribuição de renda – que seriam características de um novo modelo “social-desenvolvimentista” – e, de outro lado, a oposição de “esquerda” para a qual, sob Lula, nada mudou em relação ao passado recente, tendo ficado o Brasil mais comprometido com o neoliberalismo.
O professor José Carlos Braga, assim como a professora Maria da Conceição Tavares têm dado ao debate opiniões que ajudam a desvendar a realidade mais equilibradamente. Ambos se referem à situação do Brasil diante da economia mundial.
Braga constata várias mudanças, admite elevação do patamar de crescimento com a combinação da acumulação produtiva com a financeiro-especulativa. Mas questiona se isso permitiria a superação do subdesenvolvimento entendido como “graus importantes de subordinação internacional no plano monetário-financeiro, de baixa capacidade endógena de inovação tecnológica, de heterogeneidade estrutural nos planos produtivo, regional e social (…) de disparidades na distribuição de renda e da riqueza, de desemprego estrutura(7)”.
Conceição, igualmente, enxerga várias mudanças positivas. Porém, adverte: “Com a política de juros altos e novamente o câmbio sobrevalorizado, mantida no governo Lula, é evidente que continuou a abertura às importações e ao capital financeiro especulativo e de portfólio. (…) As reservas financeiras (tanto do Tesouro como do Bacen) devem ser suficientes para evitar a vulnerabilidade externa de uma nova recessão americana mas apenas se ela for passageira”(8).
4) Em que linha o Brasil deveria seguir?
O BC interrompeu há algum tempo a trajetória de queda da taxa de juros desde julho do ano passado. Confirmou essa postura na reunião do Copom desta quarta-feira (23). Na situação que se vai criando, de dificuldades internacionais que ainda não haviam se apresentado ao governo Lula, a política mais certa seria a que vem sendo adotada?
Belluzzo adverte: “De nada valerá manter a taxa de juros elevada para defender o real”9 no caso de crescer a contração ao crédito e a aversão ao risco. O certo seria retomar firmemente a redução das taxas de juros no esforço do crescimento.
Com a desaceleração mundial prevista, pode haver uma queda no preço das commodities. Há quem fale em até 20% dos preços atuais. Isto poderia trazer sérias conseqüências para o setor exportador e pesar sobre toda a economia. Seria igualmente necessário tomar providências cambiais de proteção.
Pode ser também que se eleve a um patamar comprometedor, como é usual nestas circunstâncias, a fuga de dólares, de capital estrangeiro aplicado na Bovespa – as remessas vêm crescendo nos últimos dias. Pode ser necessário criar mecanismos de defesa contra a especulação.
Além disso, é necessário insistir na consecução de uma reforma tributária que diminua a carga que pesa sobre os bolsos do povo e sobre o sistema produtivo da economia, onerando – isto sim – os especuladores e rentistas, os possuidores de grandes fortunas.
De todo modo, há que se considerar que a situação mudou e que a crise ainda não chegou a seu final. Há muita instabilidade e imprevisibilidade no quadro. Lula está exigindo de seus ministros providências que previnam os efeitos da crise sobre o Brasil. Assim diz a imprensa.
O PCdoB deve entrar nesta discussão, reunir intelectuais, promover debates nos quais se revele o caráter contraditório, as limitações, as mazelas e o esgotamento do capitalismo. Deve, além disto, propor medidas concretas para defender o país e seu desenvolvimento.
NOTAS
1. Ver o artigo de minha autoria A crise imobiliária nos Estados Unidos afeta ou não o Brasil?, publicado no Vermelho em 17/08/07.
2. Ernani T. da Costa, no artigo Entendendo a crise do subprime, dá conta de que só em 2005 foram vendidos mais de 8,2 milhões de imóveis residenciais nos Estados Unidos, boletim do BNDES Visão do Desenvolvimento de 18/01/08.
3. Comparação usada pelo presidente do Banco do Povo da China, Zhou Xiaochuan no artigo Instability and Evolution of the Financial System, de dezembro de 2007.
4. The Wall Street Journal/Valor Econômico, 21/01/08.
5. Ver os artigos Fundos do Golfo preocupam o Ocidente, no Valor Econômico de 21/01/08; The invasion of de sovereign-wealth funds e Asset-backed insecurity, na edição da The Economist de 17/01/08.
6. Ver o artigo do professor Belluzzo O Brasil não pode pagar com recessão a farra dos ricos, na Folha de S.Paulo de 18/01/08.
7. Ver o artigo de Braga O capitalismo brasileiro tal qual ele é, Valor Econômico, 28/06/07.
8. O texto completo Conceição Tavares pode ser lido no site http://www.centrocelsofurtado.org.br.
9. Belluzzo, artigo citado.