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Filhos de Martinho da Vila resgatam qualidade dos samba-enredos

No texto de apresentação do disco Aula de Samba – A História do Brasil Através do Samba-Enredo (Biscoito Fino), o cronista musical Sérgio Cabral (pai) menciona que o panorama apresentado se limita ao intervalo 1949-1976 e lança uma pergunta-provocação:

“Nossa preocupação explícita foi com a qualidade e o teor educacional e histórico, independentemente de questionamentos outros”, afirma Martinho Filho, idealizador do tributo ao samba-enredo. “Queria colocar um samba sobre a República, até encontrei um de 1989 que falava nisso de passagem, mas em meio a exaltações à avenida, à própria escola. A gente notou que nenhum dos sambas que selecionamos menciona sua própria escola. Eles se atêm ao tema proposto”, completa, em contraponto à voga do carnaval de auto-exaltação.



O filho de Martinho da Vila é discreto ao opinar sobre a propalada decadência na qualidade dos sambas de escolas nos últimos muitos anos: “O recado está dado”.



E o recado percorre todo o CD, como uma suave provocação. De um lado, ele e a irmã Mart’nália elegem enredos que evidenciam a ligação profunda entre as escolas de samba e temas agudos como o racismo e a desigualdade social no Brasil, como Heróis da Liberdade (reinterpretado por Maria Rita), Sublime Pergaminho (com Emílio Santiago), Os Sertões (com Fernanda Abreu), Dona Beja, a Feiticeira do Araxá (com Leci Brandão) ou, mais de raspão, Benfeitores do Universo (com Zélia Duncan).



Em outra frente, a seleção demonstra por si a força musical de criações como Aquarela Brasileira (com Simone), Os Cinco Bailes da História do Rio (com Dona Ivone Lara e Toni Garrido), Onde o Brasil Aprendeu a Liberdade (com Lenine) ou Heróis da Liberdade. Não por acaso, são composições assinadas por nomes da estirpe de Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara, Mano Décio da Viola e Martinho da Vila, cruciais na história não só do samba de avenida, mas da música nacional como um todo.



Até mesmo o elogio explícito a Getúlio Vargas erigido pela Mangueira em 1956, em O Grande Presidente (de Padeirinho), pode adquirir ares provocativos na releitura de Alcione, mas o teor educativo citado por Martinho Filho acaba por constituir o principal ponto de fragilidade no projeto. Não foram poucos os enredos forrados de loas acríticas e superficiais a vultos e acontecimentos históricos do Brasil, e essa vertente está representada aqui em Exaltação a Tiradentes (com Chico Buarque), Dia do Fico (com Moska) e Benfeitores do Universo. Afinal, ensino maniqueísta de história remete mais aos tempos de ditadura militar em que muitos daqueles sambas foram compostos que aos dias de hoje.



Quem passa com louvor nesse teste são, mais uma vez, Mano Décio e Silas de Oliveira, no samba-enredo Heróis da Liberdade (co-assinado também por Manoel Ferreira). Até há escorregadelas à exaltação acrítica, mas a letra composta para o Império Serrano em 1969 não perdeu atualidade até hoje. Passava noite, vinha dia/ o sangue do negro corria/ dia a dia/ de lamento em lamento/ de agonia em agonia/ ele pedia/ o fim da tirania, proclamam versos que os povos das favelas continuam a conhecer de perto em 2008.



Fonte: Carta Capital